10 Anos Após a Resistência de Rojava

10 Anos Após a Resistência de Rojava

Há cerca de 10 anos o BB inaugurou a sua primeira edição tratando de um tema que a derrubada de Bashar al-Assad novamente traz à tona: a resistência curda na região de Rojava (região de maioria curda na Síria). O BB #1 trazia a importante participação das Unidades de Defesa do Povo (YPG), com destaque para Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ), ligadas ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que conseguiram barrar o avanço do ISIS (Estado Islâmico) em Kobane (uma das três regiões de Rojava). Mas ao contrário do ISIS, agora novos radicais islâmicos, do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), tiveram sucesso na derrubada do exército sírio, com apoio do governo turco, tradicional repressor da população curda. Como ficará a resistência após essa troca de poder?

Da luta pela independência nacional até a luta pela libertação das mulheres: Jineologia

A separação dos curdos em regiões diferentes se deu pela primeira vez em 1639, na divisão entre o Império Otomano e o Persa. Mais tarde, novamente foram divididos, com o fim o Império Otomano e a criação da Turquia, em 1923, fruto do acordo franco-britânico de Sykes-Picot no pós-Guerra, dispersos entre Basurê (Iraque), Bakur (Turquia), Rojava (Síria) e Rojhilat (Irã). Apesar do primeiro movimento curdo organizado ter surgido com o Partido Democrático do Curdistão (KDP), em 1946, no Iraque, foi nas condições de extrema repressão aos curdos da Turquia dos anos 1960 que surgiram as primeiras organizações clandestinas de luta pela independência. O golpe de Estado turco de 1971 intensificou a perseguição aos curdos, levando ao exílio vários líderes que entraram em contato com o movimento palestino Setembro Negro, o italiano Brigate Rosse e o Grupo Baader-Meinhof (RAF). Além destes, a Guerra no Vietnã, a guerra popular prolongada na China e a revolução cubana deram a base para o início do PKK, em 1984, quando rapidamente tomou as montanhas de Qandil, seu QG até hoje. Em paralelo foram criadas a GKK: guardas de aldeias, milícias armadas e financiadas pelo governo turco para combater o PKK. Além destas, até hoje o governo turco vem se utilizando de mercenários jihadistas. Nos anos 90 o governo sírio permitiu a organização do PKK no território de Rojava – sob a sigla PYD – como forma de combater indiretamente o governo Turco na disputa geopolítica local até 1998, quando sob pressão dos EUA deixou de proteger o PKK e, em 1999 o líder, Abdulah Öcalan, foi preso no Quênia. A sua prisão dá início a um período de “semi-trégua”.

Em meados dos anos 90, a queda da URSS e a percepção de apoio internacional praticamente nulo para a formação de um Estado curdo independente fizeram o PKK passar por uma importante reestruturação interna. O modelo de Estado-nação e a teoria leninista de socialismo dentro do Estado passa a ser questionada a partir de leituras de Wallerstein e Bookchin, o qual tem o entendimento de comunismo de conselhos de Noam Chomsky e não dos clássicos do conselhismo. Como consequência o PKK abandona a luta por um Estado curdo independente, mas segue na luta pela liberdade da sociedade, contra o capitalismo, na perspectiva do que Bookchin chama de uma sociedade ecologicamente sustentável, com cidades descentralizadas e governadas por assembleias de habitantes: o Confederalismo Democrático. Esse confederalismo se organizaria através da Autonomia Democrática e levaria à formação de uma República Democrática. Para este fim, criaram em 2007 a Confederação dos Povos do Curdistão (KCK), uma organização guarda-chuva para vários partidos políticos da região, sejam curdos ou de outras etnias.

No meio desse processo, antes ainda da criação da KCK, em 1995 o PKK lança um manifesto pela liberdade das mulheres e funda a YJAK, que em 2004 se torna YPG e em 2014 a YPJ. Nesse manifesto, a mulher passa a ocupar o lugar do proletariado internacional no discurso do partido, considerada a vanguarda da luta com a tarefa de libertar as mulheres de todo o mundo e não apenas do curdistão. Essa releitura da sociedade cria a jineologia, considerada a ciência das mulheres e a partir da qual a nova sociedade seria criada.

“Quando soube que Assad e as tropas russas haviam partido, imediatamente entendi que os turcos inicariam uma operação. Mazloum, pai de quatro filhos e um dos comandantes das FDS” Mazloum, pai de quatro filhos e um dos comandantes das FDS

O mito da “Revolução Curda”

Apesar do Confederalismo Democrático ter sido bem noticiado à época da resistência ao Estado Islâmico, alguns curdos têm questionado se essa organização teria levado de fato a uma “Revolução Social”. Segundo os críticos, a burguesia não perdeu sua propriedade, utilizam o trabalho assalariado, têm garantida a propriedade privada na Constituição e o “sistema de autogestão” inclui a burguesia. Ao invés de abolir as antigas relações feudais dos clãs, a “revolução social” integrou-as. Costumes medievais, onde um chefe de clã com três esposas mata o próprio filho e a namorada dele porque ela não quis se casar com o chefe, seriam vistas como algo aceitável para o regime, apesar de estarem em desacordo com os ideais do PKK. Talvez o modelo de organização confederalista explique a dificuldade para superar esses resquícios tribais.

Öcalan defende que as reestruturações internas do PKK, desde o seu início, foram guiadas pela conversa direta com a comunidade curda. A mudança do modelo de centralismo-democrático para o confederalismo teria respeitado esse processo, com o aumento do poder das comunidades através da autogestão, mas limitou a criação de diretrizes centralizadas aos quais toda a KCK se submeteria.

“A história de 5 mil anos da civilização é essencialmente história a escravidão a mulher. Consequentemente a liberdade da mulher só será alcançada ao travar uma luta contra os fundamentos do atual sistema dominante.”
Abdullah Ocalan

O que muda com a tomada do poder estatal sírio pelos jihadistas do HTS?

Relatos de repórteres que acompanham o dia-a-dia de Rojava, como Lisa Shishko, demonstram que HTS segue com as práticas de expurgo típicas do ISIS. O governo turco e seus representantes na Síria, o Exército Nacional Sírio, em questão de dias após a queda de Assad, tomou da região autônoma duas grandes cidades: Til Rifaat e Manbij. Os curdos contavam com o apoio dos EUA em armamentos e financiamento para acabar com o ISIS, mas não se sabe se a ajuda seguirá, haja visto o confronto com interesses da Turquia. Da tomada de poder até este momento as Forças Democráticas Sírias (FDS) falam em mais de 100 mil refugiados e crimes em massa praticados nos territórios curdos por forças pró-turcas. Civis são atacados diariamente por drones turcos.

Enquanto isso, o HTS fala em desarmar a região autônoma em reuniões com o governo turco. As novas ofensivas militares na região colocam em sério risco o trabalho de base que criou as práticas autônomas após mais de 40 anos em território curdo. O grande fator moral decorrente das conquistas de um povo que antes vivia sem sequer poder falar a própria língua e agora controla, de forma autônoma, boa parte da sociedade, com novas relações sociais de produção, superando práticas seculares de machismo e colocando a mulher em igual papel de decisão que o homem, além de garantir a subsistência em condições extremamente precárias, é razão suficiente para lutar e resistir apesar do cenário catastrófico. Porém, o abismo colossal entre os armamentos curdos – especialmente se não puderem seguir com o apoio dos EUA – e as forças opressoras do governo turco agora somado ao sírio, vai levá-los, necessariamente, às vias diplomáticas de negociação. Se já estava difícil negociar com as forças não-curdas com costumes tribais antagônicos com os quais convivem no território autônomo, a conjuntura atual só amplia ainda mais o desafio pela sobrevivência.

Esse cenário de presença escassa de um proletariado industrial, dentro de uma condição de capitalismo de subsistência associado à presença de relações sociais tribais, torna ainda mais árdua a tentativa de criar um controle autogestionário no território curdo. Esse movimento, iniciado por intelectuais curdos de universidades turcas conseguiu atravessar fronteiras, ajudar um povo oprimido a se auto-organizar, passar por um difícil processo de autocrítica e se reinventar. No cenário atual de reluxo mundial das lutas proletárias, experiências que apontem para a superação das instituições capitalistas precisam ser lembradas e criticamente defendidas.♟