150 anos da Comuna de Paris

150 anos da Comuna de Paris

No mês de março passado comemoramos 150 anos da primeira experiência em que o proletariado tomou as rédeas da sociedade e se tornou dono do seu próprio destino. Um acontecimento em larga escala numa das maiores metrópoles da época, com mais dois milhões de habitantes, 500 mil destes, operários. Nas próximas linhas vamos contar um pouco dessa história e por que as suas contribuições permanecem atuais ainda hoje.

O que foi a Comuna de Paris

Para entender a Comuna é preciso conhecer a sua conjuntura histórica. Desde julho de 1870 a França de Napoleão III travava uma guerra contra a Prússia, no último capítulo da unificação alemã. Ao final desta guerra, em março de 1871, Napoleão III foi capturado pelas tropas prussianas enquanto estas marchavam rumo a Paris. Os operários parisienses estavam defendendo a cidade desde o início desta guerra, há 10 meses abandonados pela burguesia, que fugira da cidade, deixando o proletariado em situação precária, com a quase paralisação da atividade industrial, muito desemprego e ainda recebendo os refugiados das cidades já ocupadas. Ao receberem a notícia da captura do imperador e da invasão prussiana à vista, saíram às ruas para se manifestar. Nesse momento, a burguesia, representada pelo seu chefe executivo, Thiers, decide remover os canhões mantidos pela Guarda Nacional nos distritos de Paris. Ele fez isso por medo de que os operários armados de Paris impedissem o tratado de paz já encaminhado com Bismarck. Apesar das tropas de Thiers terem capturado com sucesso os canhões, os vagões necessários para o transporte de armas demoraram tempo suficiente para que multidões surgissem ao redor deles. Quando o general Lecomte, encarregado do ataque, deu a ordem para abrir fogo contra as massas já era tarde demais: os soldados se recusaram a atirar e se uniram ao povo. Thiers ordena então a retirada do exército remanescente junto com os funcionários do governo.

Sem senhores de quem receber ordens e com uma grande cidade abandonada pelos patrões em suas mãos, junto com suas fábricas e seu aparato estatal, os operários e demais defensores da cidade começam a se auto-organizar. Eles participaram da criação do Comitê Central da Guarda Nacional, um conselho de soldados responsável pela defesa de Paris. Afinal, essa era a maior preocupação inicial: sobreviver ao exército invasor. Nesse Comitê, a pequena-burguesia patriótica e radical exercia a influência predominante, compreensível pelo contexto histórico no qual a Comuna foi criada. Mesmo assim, essa liderança pequeno-burguesa não conseguiu impedir a criação, a partir de baixo, de um tipo de organização social completamente novo.

Marx lembra em “Guerra Civil em França” que a Comuna foi a primeira organização a abolir o recrutamento e o exército permanente (em meio a uma guerra!), a perdoar todos os pagamentos de aluguel, interromper a venda de produtos penhorados, separar a Igreja do Estado, excluir todos os símbolos religiosos das escolas e acabar com a guilhotina. A experiência diária do proletariado conduziu à criação dos decretos da Comuna, como aquele que determinava a tomada dos locais de trabalho, abandonados pela burguesia, de forma a colocá-los em funcionamento pela classe operária.

A Comuna foi ativa na luta contra instrumentos subjetivos opressivos como o poder dos padres, decretando a dissolução e expropriação de todas as igrejas, pois seus membros também constituíam uma classe proprietária. Todos os estabelecimentos de ensino foram abertos ao povo gratuitamente e libertados da influência da Igreja e do Estado. Assim, além da instrução se tornar acessível a todos, a ciência foi libertada dos grilhões que a mantinham acorrentada pelos preconceitos de classe e pelos poderes governamental e eclesiástico. Também foram destituídos os funcionários da justiça e, como os demais, também os magistrados deveriam ser eleitos com mandatos revogáveis a qualquer tempo. A Comuna submeteu todas as funções ao sufrágio universal e à revogabilidade e retribuiu todos os serviços, dos mais simples aos mais elevados, com o mesmo salário que o dos operários.

Após uma luta heróica os operários foram esmagados. Seguiu-se um massacre sem precedentes. A burguesia mostrou de forma inequívoca seu compromisso de classe. Mesmo em guerra com a França, o governo prussiano mandou soltar os prisioneiros daquele país, libertando-os para que combatessem os comunardos, evidenciando que não há limites que a contenham na repressão quando o proletariado ousa enfrentá-la como classe à parte, defendendo seus próprios interesses. A Comuna tornou-se uma expressão histórica de lutas sociais contra o capital. No entanto, não se trata de uma expressão ligada a práticas comunistas; ao contrário, predominavam na organização política dos comunardos experiências majoritariamente republicanas. Os coletivistas eram minoria. Ainda assim, em seus 71 dias, deixou como legado às novas gerações o fato de que uma sociedade auto-organizada pelos trabalhadores em ações administrativas de gestão direta é uma realidade plausível.

Para nós, sermos revolucionários somente significa ver um pouco além dos outros. O que nós vemos deveria mudar, da mesma forma que a própria sociedade. Para nós não existe tal coisa como uma verdade absoluta, seja na política ou qualquer outro lugar, e a ideia de uma teoria final e completa – incorporada na prática de alguns Partidos – é, na era moderna, nada além de um sonho burocrata e, além disso, uma ferramenta que os ajuda a manipular os oprimidos. Para nós, os revolucionários não são uma elite isolada, destinada a qualquer papel de vanguarda. Eles são um produto (embora o mais lúcido) da desintegração da sociedade existente e da consciência crescente pelo que terá que ser substituída.” — Maurice Brinton

Aprendizados

É curioso perceber que aquilo que apontamos como um dos destaques dessa experiência – apesar de não ser o mais relevante – é lembrado pela esquerda do Capital, desde seus matizes socialdemocratas até os bolcheviques, como a sua maior falha: a inexistência de uma forte liderança partidária. A Comuna foi ao mesmo tempo uma experiência espontânea e consciente. Uma experiência onde o proletariado, sem preparação prévia e pela primeira vez nessa escala, se viu como “uma classe para si” (nas palavras de Marx) – isto é, uma classe consciente e, de forma explícita, coletivamente preocupada com o seu próprio destino na sociedade. A Comuna foi, e sempre será, memorável por ser a primeira forma de autogoverno proletário da história. O que não se confunde com a forma institucional do comunismo, o Sistema de Conselhos Proletários.

Entretanto, ela não alcançou a autonomia teórica, para a qual é necessária a identificação de vários resíduos de pensamento burguês que carregamos conosco. Isso significa se vacinar conscientemente contra a doença do “operarismo”, uma condição na qual tudo o que a classe operária diz ou faz, mesmo que reacionário, é miraculosamente dotado com qualidades positivas transcendentais. Uma crítica diferente da feita pela esquerda do Capital quanto à ausência de uma “forte liderança partidária” na Comuna. A crítica bolchevique e socialdemocrata se baseia no mito de que a consciência socialista tem que ser injetada no movimento da classe operária por intelectuais especialistas em teoria revolucionária. Curiosamente anterior aos bolcheviques, a Comuna deveria servir justamente para desmistificar essa crença.

Os limites da Comuna são evidenciados pela assimilação, por parte da burguesia, de muito do que foi posto em prática por ela. O Estado laico, a educação independente do ensino religioso, a participação das mulheres na política representativa até o sufrágio universal, o fim da pena de morte, o fim do alistamento obrigatório, são alguns dos exemplos do que, algumas décadas mais tarde, foi adotado pela burguesia internacionalmente, ainda que sem unanimidade. Afinal, eram medidas que não questionavam a exploração e a produção de capital. Elas não criavam, necessariamente, as condições para destruição do Estado e a criação do não-Estado. As principais ações que apontaram para a maior autonomia teórica e organizacional, que mostraram que o proletariado estava começando a pensar numa outra sociedade, foram a anulação das hierarquias, limite de salário de operário a todos e a revogabilidade a qualquer momento dos seus representantes.

…a questão prévia a qualquer reforma social é a organização das forças revolucionárias do trabalho; em todas as greves o que nos preocupa não é tanto o insignificante aumento salarial, a pequena melhoria das condições de trabalho. Tudo isso é apenas secundário; são paliativos que servem enquanto se espera por alguma coisa melhor, mas o supremo objetivo dos nossos esforços é o agrupamento dos trabalhadores e a sua solidariedade.” — Louis-Eugène Varlin

Para além da Comuna

Apesar dos avanços, o proletariado teve dificuldade para se organizar de forma independente das outras classes. Apenas uma minoria apontava o caminho contrário à conciliação de classes com a pequena-burguesia. Com isso, o proletariado não foi capaz de desenvolver organizações completamente controladas pelos próprios operários, com a autonomia genuína da classe. Percebemos que ainda hoje o movimento operário traz no seu âmago esse “pecado original”, mas em certas épocas e locais nossa classe conseguiu, posteriormente, criar a autonomia organizacional com os chamados conselhos proletários.

A Comuna alcançou o seu limite justamente por não conseguir consolidar uma forma organizacional que fosse diferente do Estado. As novas formas criadas a partir de baixo não alcançaram expressão e representatividade necessária na classe. Essas organizações do não-Estado não podem esperar a nova sociedade para existir, pois se não estiverem presentes no período revolucionário, o Estado e a classe que o sustenta conseguirá usar toda a superestrutura remanescente para recuperá-lo. Novas relações pessoais, de trabalho, de camaradagem, novas experiências em ocupações de fábricas e em greves, todas organizações que trazem o controle da sociedade para as mãos do proletariado, são exemplos de criação do não-Estado.

Ao acolher outros franceses oriundos das cidades ocupadas, o proletariado da Comuna precisou se desvencilhar do bairrismo local e acolher com solidariedade camaradas em sofrimento. Desde a sua primeira manifestação mais autêntica, portanto, o proletariado carrega o internacionalismo. E não será por escolha, mas por necessidade, que os famélicos da terra abandonarão o patriotismo e quaisquer fronteiras por uma terra sem amos.♟