Em 2020 a burguesia novamente demonstrará que consegue unificar a direita e a esquerda do capital através da ideologia de que o país estaria mergulhado numa crise sem precedentes. Candidatos dos mais diversos matizes, do conservadorismo ao progressismo, justificaram dessa forma os ataques aos trabalhadores nas últimas décadas, sejam eles prefeitos ou vereadores. É também nessa época que surgem “líderes comunitários” prometendo algumas migalhas ao proletariado. Claro, tudo através do “braço amigo” do Estado. E ninguém sabe onde estavam durante as reformas da previdência e trabalhista. Afinal, o que interessa aqui é administrar algumas necessidades que de fato impactam na vida de qualquer trabalhador assalariado, mas cujas conquistas de forma alguma colocam em xeque o domínio do capital e a exploração do proletariado.
As eleições municipais representam um dos momentos mais claros do significado da democracia. Percebe-se até mesmo nos discursos as suas limitações. Diferente das eleições estaduais e federais, onde setores mais avançados da esquerda do capital chegam a questionar o papel da polícia, propõem formas auto-organizadas das comunidades se defenderem e até mesmo questionam a exploração de classe; nas eleições municipais a burguesia astutamente organiza o processo eleitoral de forma a restringir a reflexão apenas sobre os aspectos mais imediatos de nossas vidas, como se fossem assuntos menores.
Os candidatos da esquerda irão criticar a aparente incapacidade do capital em suprir algumas necessidades básicas do proletariado, que na verdade são perfeitamente supríveis, basta olhar para os países de capitalismo avançado. Na essência das suas propostas está a legitimação da exploração de classe com um viés mais humanitário. Seja referente aos problemas de saúde, segurança ou educação, não propõem nada que uma direita lúcida também não faria caso fosse seriamente pressionada pelas ruas.
No que diz respeito à saúde, o embate principal entre direita e esquerda do capital continuará se dando em torno do financiamento desse serviço público. Trata-se de um debate antigo, que remete pelo menos aos tempos de Bismarck, por sua vez rivalizado com o inglês William Beveridge na década de 1940. Mas que nada acrescentou do ponto de vista do proletariado. Esse debate retorna à cena política nacional com as novas propostas de financiamento do SUS trazidos pelo Ministro da Saúde do governo Bolsonaro. Ele deixou claro nas suas últimas falas públicas que vai implantar a “meritocracia” e entregar a administração dos serviços nas mãos da iniciativa privada. Vale lembrar que tal ideia começou a ser implantada nos governos do PT com a criação da EBSERH. De qualquer forma, sejam administrados diretamente pelo Estado ou por grupos empresariais, o acesso à saúde e a sua qualidade só podem ser de fato garantidos se houver o controle pelo proletariado, senão continuará sendo instrumento de controle estatal travestido de política de bem-estar social.
“O que é a sociedade, qualquer que seja sua forma? O produto da ação recíproca dos homens. Os homens podem escolher livremente esta ou aquela forma social? Nada disso. Pegue determinado estágio de desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens e terá determinada forma de comércio e consumo e terá determinada forma constituição social, determinada organização de família (…)” — Karl Marx
Outro ponto é em relação à educação, pois já se constata a quantidade enorme de municípios brasileiros que aprovaram a lei da Escola Sem Partido e a proibição do ensino de “ideologia de gênero” nas escolas. Muito do que se passa na política local nessa área nem sequer pode ser mensurado, pois é um fenômeno que avança silenciosamente.
Se por um lado a esquerda se perde em discussões sobre os possíveis modelos de prestação de serviços públicos essenciais, por outro já parece ter abandonado qualquer defesa dos trabalhadores que de fato prestam tais serviços. Um bom exemplo é o da verticalização da reforma da previdência, pois apesar de muitos prefeitos já terem começado por própria iniciativa uma adaptação da previdência dos trabalhadores estatutários à reforma recém aprovada, o grande impacto nacional virá a partir de julho, quando passa a valer a portaria Nº 1.348 que, entre outras coisas, determina o aumento da alíquota de contribuição dos servidores municipais até, pelo menos, o valor dos segurados do Regime Geral de Previdência Social. E agora que há um presidente de extrema direita no comando do país, a social-democracia em âmbito municipal dirá que está de mãos atadas em relação ao governo federal e que nada poderá fazer em relação a outras futuras reformas.
Apesar de se limitarem principalmente às questões locais, as eleições municipais sinalizam o ambiente da opinião pública com vistas à eleição nacional. Neste ano, além da possibilidade de se ver Lula como cabo eleitoral, haverá o primeiro teste da capacidade do presidente Jair Bolsonaro de transferir votos para outros candidatos, mesmo estando atualmente sem partido. Nas municipais de 2016, por exemplo, vislumbrou-se a onda que culminou na vitória do Bolsonaro em 2018. Então estas eleições serão um termômetro para 2022. Uma safra de prefeitos eleitos com base na chamada “nova política” já estão atuantes e a perspectiva é de um aumento, capilarizando o bolsonarismo nas cidades. Tudo isso segue em consonância com o lema “Mais Brasil, menos Brasília”, que faz parte da proposta encabeçada por Paulo Guedes, de aumentar a aprovação bolsonarista nas cidades destinando maior orçamento às prefeituras e oferecendo formação para recém-iniciados na política.
“Ao tratar da sociedade de classes autoritária e da alternativa socialista libertária, os revolucionários tradicionais fazem parte do problema e não da solução.” — SOLIDARITY
Isso é perceptível no PSL que, mirando as eleições municipais, realiza desde 2018 campanhas de filiação angariando mais de 188 mil pessoas em apenas um mês. Da mesma forma o MBL não fica para trás. Inicialmente, eles se valeram de uma estética moderna para falar de liberalismo e corrupção para a juventude, apoiaram pautas do Bolsonaro e de forma ladina se reposicionaram distanciando-se do bolsonarismo. Assim elegeram quatro deputados federais e dois senadores. Atualmente trabalham para eleger candidatos em grêmios estudantis e formar novas lideranças, almejando eleger centenas de vereadores. Também estamos assistindo à formação de um partido com raízes fascistas, o Aliança pelo Brasil, cuja influência que terá para as cidades ainda não é possível mensurar. Sabe-se, entretanto, que os entraves operacionais para a criação do partido podem impedi-lo de ser criado até abril – limite para poder concorrer às eleições.
Entretanto, não lamentamos que a social-democracia esteja perdendo cargos de governo; não devemos gastar energias lutando para que haja mais PSOL ou PT nas prefeituras, até porque não é raro flagrá-los em coligações com partidos de direita em nome do poder; algo que poderia parecer estranho, mas que nunca surpreendeu a quem enxerga tal fenômeno sob o viés da autonomia proletária.
Nossa atuação deve ser voltada contra as medidas que são tomadas contra o proletariado tanto por governos de direita como de esquerda. Afinal, reconhecer a importância de eleger representantes para as instituições burguesas, mesmo que seja com o objetivo de tentar minimizar o impacto da exploração sobre a classe, como um pelego, significaria legitimar a democracia e seu Estado burguês.
É um momento de aproveitar a embriaguês da burguesia com comemoração democrática para partir das necessidades do proletariado que até mesmo os setores mais progressistas da burguesia reconhecem, de forma titubeante, e aprofundá-las até as suas raízes. É oportuno criar grupos de discussão no seu bairro, na sua escola, no seu local de trabalho, para entender como as coisas funcionam para além do município ou do bairro, até a sociedade em que vivemos como um todo. Essas organizações locais são um contraponto ao pacto de alianças de classe social-democrata que subsidiou a ascensão dos anseios moralistas e a intolerância da direita tradicional. É uma das formas de demonstrar que o caminho da libertação do proletariado não passa pelas eleições de A ou B, mas somente pela auto-organização da própria classe.♟