Fim da Escala 6×1: Interesses em conflito

Fim da Escala 6×1: Interesses em conflito

No interior da luta de classes poucas reivindicações são tão importantes ao proletariado quanto a sua jornada de trabalho. Uma vez que o trabalho assalariado é imposto aos proletários pelo sistema capitalista, para nós, tão importante quanto o salário que recebemos é quanto tempo ficamos à disposição dos patrões. 

Neste mês, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) apresentou a proposta de emenda à Constituição (PEC) sugerindo a abolição da escala 6×1 na Câmara dos Deputados. Dessa forma, o limite semanal de horas trabalhadas seria reduzido das atuais 44 para 36. Essa reivindicação foi plataforma da campanha de Rick Azevedo (PSOL-RJ) e o levou a ser eleito vereador nas últimas eleições.

Impulsionada pelas redes digitais, a PEC chacoalhou o debate público e ganhou as ruas no último feriado do dia da Proclamação da República, colocando no centro da discussão a exploração do proletariado. Colocada contra a parede, a direita se dividiu entre setores que a defendem – com muitíssimas reservas -, e setores que se opuseram integralmente. Já a esquerda conta com frações que chegam a vislumbrar a possibilidade de uma repetição dos levantes de 2013. Nesta edição do Boletim Batalhar analisaremos esta reorganização dos setores sociais e buscaremos entender o que esta proposta realmente representa para o proletariado.

Esquerda do capital

Começamos por investigar a natureza do movimento VAT (Vida Além do Trabalho). O VAT surgiu de um vídeo publicado por Rick Azevedo em suas redes digitais, em que o influenciador desabafa sobre as extenuantes condições de trabalho sob a escala 6×1 (em que se trabalha 6 dias e se descansa 1). O vídeo viralizou e o movimento ganhou nome e tomou proporções nacionais. Diversos setores da esquerda ecoaram a demanda e eventualmente a direção única do movimento por Rick Azevedo foi questionada pela proposta de eleições para direção e uma reorganização da coordenação do movimento por comitês de base.

A resposta de Rick foi reveladora: expulsar e notificar extrajudicialmente os proponentes, declarando-se o único “dono” do movimento, registrando a marca VAT em seu nome. Talvez por oportunismo ou pelo temor de que o movimento fosse cooptado por determinados grupos da esquerda, Rick respondeu a um pedido legítimo de maior participação popular no movimento com flagrante autoritarismo e burocratização. Ligando os pontos, conseguimos aferir que ao centralizar a responsabilidade pelo movimento em sua figura, em um eventual fim da escala 6×1, Rick poderá colher sozinho os frutos desta luta coletiva, consolidando sua incipiente trajetória parlamentar. Diante destes desdobramentos é preciso compreender que a luta por melhores condições de vida pertence ao conjunto do proletariado e não deve ser registrada em nome de um ou outro autodenominado líder.

Já no âmbito do Governo Lula, o ministro do trabalho Luiz Marinho (PT) declarou simpatia pela proposta mas acredita que esta luta deva ser travada dentro dos sindicatos. Ou seja, a posição do governo é clara: Nada de luta na rua! Podemos solicitar mais direitos, mas “com serenidade” pois “fixação de horários deve ser feita em mesa de negociação”. Não é de se espantar que o ministro, um sindicalista de carreira, prefira empoderar as já enfraquecidas estruturas do sindicalismo de estado ao invés de garantir um benefício trabalhista em nível constitucional, sem se importar com o fato de que atualmente quando o negociado prevalece sobre o legislado o proletariado tende a sair perdendo. Trata-se de um exemplo nítido de algo que sempre alertamos por aqui: os dirigentes sindicais possuem interesses próprios, que não se confundem com os da nossa classe. Até o momento, a única articulação de que se tem notícia foi do sindicato dos trabalhadores da PepsiCo, que deflagrou uma greve neste mês pelo fim da escala 6×1.

“Portanto, se esse prolongamento antinatural da jornada de trabalho, a que o capital visa em seu impulso desmedido de autovalorização, encurta o período de vida dos trabalhadores individuais e com isso a duração de sua força de trabalho, torna-se necessária a mais rápida substituição dos que foram desgastados. Torna-se portanto necessário incluir custos maiores de depreciação na reprodução da força de trabalho, do mesmo modo como a parte do valor que tem de reproduzir-se diariamente de uma máquina é tanto maior quanto mais rápido seja o seu desgaste. Parece, portanto, como sendo do próprio interesse do capital uma jornada normal de trabalho.” Karl Marx

As Direitas

A grande adesão popular da proposta aprofundou fissuras em uma direita que já vinha apresentando sinais de fragmentação. Frações da direita responderam de formas diferentes a essa saia justa legislativa. Uma parcela minoritária

de forma oportunista e acovardada tenta surfar no entusiasmo dos trabalhadores e angariar capital político apoiando o fim da escala 6×1. Um outro grupo mais ligado ao eleitorado evangélico se posiciona integralmente contra a proposta, apostando no extremismo e na ideologia da prosperidade que transpassa uma parcela considerável do proletariado. Defendem que o trabalhador exemplar é aquele que não mede esforços na  busca do sucesso financeiro. Por fim, a maior fração finge estar disposta a “debater” a proposta, apresentando-se como o “adulto na sala”, apelando ao aspecto “técnico” da questão. Argumentam que se a proposta for aceita o país vai quebrar, a economia não irá aguentar, os pequenos empresários irão falir, para enfim concluir que  esta proposta seria ruim para os trabalhadores. O curioso é que também defendem a “livre negociação” entre o trabalhador e o patrão sobre a jornada de trabalho, porque sabem que dessa forma o explorador sempre vencerá.

Este falso argumento não é novidade. Historicamente, frente à abolição da escravatura (1888), à criação  do Salário Mínimo (1940), à criação da CLT (1943), ao fim do trabalho infantil (1990), entre muitos outros exemplos, argumentos de terror social com o “colapso econômico” têm sido usados pela burguesia a fim de resistir às conquistas de direitos aos proletários. Este é um exemplo cristalino do conceito marxiano de ideologia – uma operação de ocultação da verdade material. No caso analisado busca-se ocultar a extrema capacidade de adaptação do capitalismo, sendo que em todos os casos citados as classes dominantes se ajustaram às novas regras e em larga escala conseguiram aprofundar ainda mais sua capacidade de exploração e acumulação.

A redução da jornada de trabalho provoca a ira de muitos defensores do capitalismo, sistema no qual o tempo livre é um privilégio que apenas os burgueses podem usufruir plenamente, já que têm a sua disposição a classe proletária para lhes gerar riquezas e a classe gestorial para gerir a exploração em nível global.

“Um cálculo realizado pela ONU no final do século 20 indicava que, para se produzir tudo o que hoje é produzido no planeta, se todos os humanos entre os 22 anos e os 50 anos de idade trabalhassem, se a licença maternidade passasse para quatro anos e a licença paternidade para três anos – e se todos trabalhassem com a produtividade média de um trabalhador japonês (não mais, naquela época, topo da produtividade do planeta), cada pessoa teria de trabalhar 17 minutos por dia” Sérgio Lessa 

A posição proletária

Após analisar mais profundamente as posições da esquerda e direita do capital (gestores e burgueses), temos algo claro: nem um nem outro carregam o interesse dos proletários. Desde a redemocratização é a primeira vez que a esquerda do capital (social-democracia) apresenta uma reivindicação tão genuinamente proletária de forma tão engajada, no que parece ser o limite de sua atuação em prol de um capitalismo mais tolerável aos explorados, prevenindo que o proletariado rompa com a legalidade ao lutar pela sua sobrevivência (como por exemplo organizando greves autônomas).

Devemos estar atentos e preparados para os efeitos colaterais que essa PEC, se aprovada, pode trazer para a vida no trabalho. A diminuição do tempo de trabalho representa uma diminuição na extração da mais-valia absoluta do empregado pelo patrão, ou seja, uma diminuição na exploração física do trabalhador que trabalha menos horas. Para compensar a perda na taxa de lucro, os patrões responderão com um um aumento da extração da mais-valia relativa, ou seja, sessões de trabalho mais intensas com altas metas de produtividade e constante capacitação em relação a novas tecnologias digitais, algo que afeta diretamente a saúde psicológica dos proletários. A própria autora da PEC prometeu trabalhadores mais produtivos na escala 4×3.

Mesmo que a PEC seja aprovada, devemos ter claro que no capitalismo direitos que foram ganhos com luta em um momento podem ser retirados em outro. Um exemplo é o da Grécia, que em 2024 aumentou a jornada máxima semanal de 40h para 48h, na contramão de boa parte dos países europeus.

Outra preocupação relevante é que se evitem mais divisões por motivos jurídicos em nossa classe. Isso porque, segundo dados governamentais, cerca de 40% da força de trabalho no Brasil não possui carteira assinada e não seria beneficiada diretamente pela PEC. Cenário semelhante à diferença de direitos que existe entre os trabalhadores CLT e os servidores públicos estatutários. A classe é uma só e deve sempre lutar por conquistas para sua totalidade.

Os proletários conscientes, somar-se-ão a esta luta por que é seu interesse de classe. Dedicar-se-ão a deslocar o alarde das redes digitais às ruas, locais de trabalho, estudo e moradia. Trata-se de um tema que pode unir trabalhadores divididos por ideologias petistas e bolsonaristas, revelando os reais inimigos: os capitalistas.

Que a luta pelo fim da escala 6×1 restaure a confiança dos proletários em sua própria capacidade de organização e os relembre de que são os únicos que podem parir um mundo mais justo. Não pode haver dúvida que trabalhar em regime 4×3 ainda é um absurdo. A luta agora é por menos exploração, mas que amanhã seja por exploração nenhuma.♟