O ano de 2023 começou de forma surpreendente para o cenário político brasileiro: na segunda semana do ano as sedes dos Três Poderes em Brasília foram invadidas por uma horda fascista. Aparentemente porque os descontentes com o resultado das eleições de outubro de 2022, que desde então realizavam atos visando impedir a posse do presidente eleito, clamavam por um golpe de estado. Muitos analistas abordaram o tema, mas aqui o faremos demarcando semelhanças e diferenças com o fascismo clássico, as raízes econômicas e políticas da “versão brasileira” e como deve ser a resposta proletária.
Um ato fascista na capital brasileira
O fascismo já teve uma representação significativa no Brasil, por meio do integralismo, no início do século passado, com cerca de 1 milhão de pessoas participando diretamente. Isso representava 2,5% da população brasileira na época. Essa presença histórica sofreu um recuo em suas manifestações após o final da ditadura civil-militar. Não é à toa que muitas pessoas sentem se tratar de algo esquecido e enterrado na história brasileira quando se toca no assunto. Entretanto, atos como esse servem para nos lembrar que ele não só está muito vivo como ativo. Vamos tentar entendê-lo a partir da obra “Labirintos do Fascismo” de João Bernardo.
Assim como outras formas do capitalismo, para o fascismo também é essencial criar uma abstração que, aparentemente, consiga resolver a contradição insolúvel entre a burguesia e o proletariado. Mas o que lhe dá uma característica própria é a essencialidade do elemento narrativo, estético, na ideologia. A estética fascista leva a simbologia da conciliação entre classes ao extremo por meio do supraclassismo e a aparente fusão de todo o povo. Nessa ideologia há uma inversão onde a forma se torna o verdadeiro conteúdo, necessária para anular um discurso que é contraditório. Esse jogo entre forma e conteúdo onde, aparentemente, o último desaparece, faz do fascismo o representante da arte pela arte na política: a ideologia fascista foi menos uma política do que uma estética. Como foi estética, e não econômica, a oposição do fascismo à sociedade burguesa. O fascista não condenava os efeitos dos burgueses sobre a produtividade fabril e nem sua hipocrisia moral, mas sim como geradores de uma falta de gosto e de corpos flácidos. A oposição a isso era o herói, o mito.
Ao conhecer as características essenciais do fascismo começam a ficar mais claras algumas práticas orquestradas pelos setores que davam sustentação ao governo Bolsonaro, e que estão nas ruas se manifestando abertamente desde 2013. É o caso das bandeiras do Brasil tentando encobrir qualquer contradição de classe. Aliás, a contradição é a base de um discurso unificador que quer fabricar uma nova percepção da realidade, a exemplo das pessoas com camisas de uma das instituições mais corruptas do país, a CBF, gritando contra a corrupção petista. Manifestações cheias de coreografias representando uma massa sob controle. Atos com pessoas dançando enquanto pedem intervenção militar, traduzem, no dizer de João Bernardo, que “estéticas há muitas, e os fascistas converteram a violência em dança”. Acampamentos em frente a quartéis das forças armadas conclamando-os para a tomada de poder, porém regados a churrascos e bebidas, dando um tom paramilitar ao movimento e ao mesmo tempo traduzindo a lógica de revolta dentro da ordem. Tudo isso foi sendo cultivado até chegar ao ápice da estética desse movimento fascista: uma marcha sobre a Praça dos Três Poderes seguida de uma arruaça regada a urina, fezes e destruição de obras de arte e objetos históricos raros.
Ademais, não parece ter sido ao acaso a destruição das obras do idealizador da Semana de Arte Moderna de 1922, grande expoente do Modernismo, Bruno Giorgi, membro da resistência italiana e participante da Guerra Civil espanhola, bem como Victor Brecheret, introdutor do modernismo na cultura e escultura brasileira, entre tantas outras. Aqui, no entanto, é preciso fazer uma diferenciação entre essa horda e os movimentos fascistas de cem anos atrás. Na Alemanha e na Itália, para ficar nos exemplos mais emblemáticos, os fascistas, embasados teoricamente pelo movimento artístico denominado futurismo, não só combatiam o que consideravam arte degenerada, como também almejavam uma nova estética que traduzisse os anseios imperialistas de suas nações e uma suposta essência de seus povos, e isso orientou desde o desenho de seus uniformes até a configuração arquitetônica das cidades durante aqueles regimes. Dentre os arruaceiros brasileiros, ao contrário, o que se notou foi uma ânsia de destruição de obras de arte que justamente tentaram traduzir uma identidade nacional, o que parece indicar que ao mesmo tempo em que nutrem ódio por qualquer ideia de erudição artística, científica e histórica, tampouco estão interessados em um projeto de nação grandiosa.
“Os psicólogos sutis aconselham a acalmar as massas, a mantê-las num estado de apatia letárgica. Não, meus senhores, deve fazer-se exactamente o contrário. Para dirigir as massas tenho de arrancá-las à apatia. As massas só se deixam conduzir quando estão fanatizadas. Apáticas e amorfas, as massas representam o maior dos perigos para qualquer comunidade política. A apatia constitui uma das formas de defesa das massas. É um refúgio provisório, um entorpecimento de forças que de súbito explodirão em acções e reacções inesperadas.” — Adolf Hitler
E para entender essa discrepância é preciso lembrar que os setores burgueses envolvidos nisso têm tudo para rejeitar qualquer projeto imperialista brasileiro, pois o agronegócio, o garimpo, a mineração e os rentistas do mercado financeiro parasitam os recursos naturais e a força de trabalho de forma selvagem e querem continuar “passando a boiada”. Qualquer projeto de Brasil com protagonismo internacional, com indústria de ponta, exigiria regulamentação estatal intensa e atuante nos setores da economia, reprimindo exploração de trabalho escravo e o desmatamento predatório, tributando fortunas, combatendo a formação de monopólios, etc. A aliança política desses setores com as Forças Armadas não é eventual, é histórica, pois todos os breves sopros de imperialismo brasileiro foram alvos de conspiração ou ação militar, quase sempre em conluio com imperialismos estrangeiros: Dom Pedro II, Getúlio Vargas, João Goulart, Ernesto Geisel, Lula e Dilma.
Assim, apesar de esse movimento verde e amarelo possuir vários elementos fascistas como o conservadorismo cristão, o militarismo, potenciais milícias formadas pelos CAC’s (caçadores, atiradores e colecionadores de armas de fogo), milícias atuantes formadas por policiais militares, um líder na figura de Bolsonaro, etc., falta-lhe o elemento imperialista.
Como resultado temos um patriotismo vazio e entreguista, que rechaça a ideia de uma nação forte no plano internacional. O que aconteceu no dia 08 de janeiro foi um grito de desespero de alguns setores da burguesia contra outros, e a discussão de fundo é sobre quais instituições eles consideram que devem ser fortalecidas e quais devem ser enfraquecidas no capitalismo brasileiro. De um lado a socialdemocracia, com Lula, querendo fortalecer IBAMA, FUNAI, Polícia Federal, Poder Judiciário, SUS e universidades, tentando provar ao capitalismo mundial que é capaz de conciliar conflitos de classe, étnicos e identitários sem abalar a ordem social interna, garantindo a legitimidade da exploração capitalista. De outro lado os que enxergam nos quartéis o modelo de instituição que deve gerir o país, com poderes para abafar qualquer atuação estatal que prejudique os negócios e para reprimir com truculência qualquer dissidência política ou moral. Em um cenário em que o proletariado brasileiro não exerce nenhum protagonismo de classe, o imperialismo estadunidense já se manifestou abertamente favorável ao grupo socialdemocrata. Por consequência, as pessoas que promoveram a destruição no Distrito Federal foram detidas e sofrerão com a atuação dos membros do Judiciário que tanto xingaram em seus discursos, enquanto os militares, sem apoio internacional, fazem de conta que nada tem a ver com os atos de seus fãs, e o movimento como um todo permanece à espreita para seguir fustigando os socialdemocratas.
“Mesmo que o vencedor tente evitar destruição em demasia, o perdedor será tentado a causar destruição inútil por puro ressentimento. É de se esperar que ao final da luta a burguesia decadente cause uma grande destruição. Por outro lado, para a classe operária, a classe que lentamente assumirá o controle, a destruição não mais será uma forma de luta. Pelo contrário, tentará legar um mundo tão rico e intacto quanto possível a seus descendentes, à humanidade futura. Não apenas quanto aos meios técnicos, que podem ser melhorados e aperfeiçoados, mas especialmente os monumentos e as memórias das gerações do passado que não podem ser reconstruídas.” — Anton Pannekoek
Por um futuro sem patrões: conhecer e preservar o passado para entender o presente
O fato de tantos proletários terem apoiado eleitoralmente esse fascismo à brasileira e alguns chegarem a se envolver ou defender os atos de janeiro não nos espanta, e como já demonstramos em outras edições, isso é também obra da socialdemocracia. Como assevera João Bernardo “quando o ressentimento toma o lugar da hostilidade de classe, a violência revolucionária é substituída pela crueldade”.
Porém, o proletariado com consciência comunista, além de não ter que se engajar em lutas entre facções de capitalistas, não tem motivos para participar de destruições de obras de arte ou de artefatos históricos, pois mesmo que expressem conteúdos opostos à emancipação proletária, não é possível construir um mundo novo sem perspectiva histórica.
Além do mais, é uma tática burguesa típica o ato de tentar apagar o passado ou caracterizá-lo como uma era de trevas, glorificando e preservando o seu atual domínio de classe. Enquanto a burguesia se digladia acerca de quais instituições são necessárias para bem gerir o capital, é tarefa urgente do proletariado conhecer as experiências históricas que apontaram para a superação do capitalismo, pensando em quais instituições criará para autogerir a produção da vida em escala mundial e, a partir desses aprendizados, se recolocar na cena política por meio da luta autônoma, essa sim, capaz de fazer tremer tanto os fascistas quanto os socialdemocratas.♟