80 anos da CLT

80 anos da CLT

Na década de 80 do século XX, após um período de recolhimento em função da ditadura militar, surgiu o que foi chamado de “novo sindicalismo”. Era um novo momento histórico, com novas lideranças surgindo. Naquela época, era difícil uma assembleia onde alguém não lembrasse que a CLT era uma cópia da Carta del Lavoro, de Benito Mussolini, e implementada na sua essência pelo ditador brasileiro da época, Getúlio Vargas. A CLT era criticada e rotulada de fascista por toda militância da esquerda de então. O presidente Lula, certa vez, em discurso para os metalúrgicos do ABC paulista, disse enfaticamente: “A CLT é o AI-5 dos trabalhadores brasileiros”. Hoje, quando diante do intenso debate sobre a flexibilização da CLT, é preciso questionar: será que estamos mais conservadores, já não achamos a CLT fascista, ou perdemos força de mobilização e de contestação? A mídia burguesa vem apresentando diferentes versões sobre os temas que envolvem a CLT – em comum, tais narrativas são ideológicas.

O período em que Getúlio Vargas esteve no poder foi marcado por uma nova forma de fazer política no Brasil, o chamado populismo. A despeito da opinião sobre Getúlio, não há como negar a sua popularidade, nem a relevância que teve no processo de formalização dos direitos dos trabalhadores (incluídos aí a criação da Justiça do Trabalho e o atrelamento dos sindicatos ao Estado). A luta do proletariado por direitos, entretanto, é bem anterior ao governo Vargas.

Em 1917, o proletariado brasileiro diante de condições de trabalho degradantes, salários baixos e jornadas elevadas, surpreendeu patrões e governo parando o país na maior greve já ocorrida até então. Os trabalhadores quase não tinham direitos trabalhistas e o custo de vida nas cidades era demasiadamente alto. Essa greve inspirou o proletariado, que mesmo sob dura repressão por parte do Estado e das elites, procurou manter-se organizado ainda que de forma dispersa. De olho no que se passava no mundo, o proletariado brasileiro lutava basicamente por 8 horas de trabalho diário, salário-mínimo, descanso semanal, regulamentação do trabalho da mulher e das crianças, previdência social. O proletariado desde os últimos anos do império já havia compreendido a necessidade de se organizar para lutar, e essa consciência, que se expressou em ações maiores ou menores de acordo com a sua força, sempre foi alvo de grande preocupação das elites.

“Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem.” — Rosa Luxemburgo

Com a crise da produção cafeeira no início dos anos 30 e o apoio substancial do governo Vargas dispensado a esse setor, a incipiente indústria brasileira passou por um período de estagnação e a inflação no país se elevou consideravelmente. Nessa mesma época já se observa que o crescimento do proletariado urbano, sua dramática situação de vida e o seu potencial explosivo, já não podiam ser totalmente ignorados, vez que entre os anos 1930 e 1940, emergiram greves, sobretudo nas grandes cidades, estando os trabalhadores mais do que cientes da importância dos movimentos de resistência como maneira de influenciar a política governamental. Vargas, habilmente, buscando atender todos os setores, iniciou uma política de valorização da industrialização brasileira, de estatização de setores fundamentais para o bom funcionamento da economia nacional. Tratou de promover a expansão do mercado consumidor interno, o que se deu por meio da consagração de direitos trabalhistas para empregados urbanos. Inicialmente, excluindo expressamente da proteção celetista os trabalhadores domésticos e rurais. A escolha de Vargas por esse modelo excludente atendia aos anseios da indústria por mercado consumidor interno e não desagradava o setor agroexportador, que não aceitava suportar o ônus decorrente de direitos trabalhistas, pois encareceriam seu produto no mercado internacional. Paralelamente à CLT, o Estado brasileiro manteve os trabalhadores rurais, que na primeira metade do século XX eram a maioria do proletariado, à margem do sistema protetivo. Vargas, num verdadeiro golpe de mestre, estabeleceu o poder da norma jurídica reivindicada no trabalho urbano, mas manteve a influência coronelista para o trabalho rural, que seguiu inconteste durante todo o seu governo. A cereja do bolo da política varguista foi a regulamentação dos sindicatos e dos direitos trabalhistas como uma forma de controle do proletariado, de seus movimentos de resistência e de forçar a “colaboração de classes”. Ao regulamentar a relação capital-trabalho, Vargas se apresentou como o político que se preocupou com os trabalhadores, sem, entretanto, negar os interesses dos patrões – dois pólos impossíveis de serem conciliados. As organizações antes livres do proletariado e por eles sustentadas, passaram a ter sua formação, atuação e sustento controlados e ditados pelo Estado, num claro exemplo da capacidade do capitalismo “recuperar” a seu favor ferramentas outrora utilizadas pela nossa classe.

A CLT como diz seu nome é uma “consolidação” de várias leis que já existiam. Não foi nada inventado ou puramente copiado por Vargas para presentear o proletariado brasileiro, pelo contrário, as conquistas legislativas sempre expressam muito menos do que aquilo que o proletariado consciente realmente queria, são um prêmio de consolação do capital na tentativa de arrefecer as lutas autônomas. Já durante as décadas de 70 a 90 do século XX, de modo geral no Brasil, vivíamos um momento no qual o movimento sindical tinha bastante força e por isso sua capacidade de negociação e de enfrentamento era grande. A partir do início do século XXI, com a socialdemocracia petista no poder central aos poucos os enfrentamentos reais foram sendo canalizados para negociações legislativas ou ações jurídicas de modo que nossa classe foi se desmobilizando. Some-se a isso o processo de uberização e a consequente atomização dos trabalhadores, a ideologia do empreendedorismo, pandemia e chegamos a um proletariado disperso e fragmentado.

“Não estamos perdidos. Ao contrário, venceremos se não tivermos desaprendido a aprender.” — Rosa Luxemburgo

Assim, nossa correlação de forças está muito desfavorável em relação aos patrões. Aproveitando-se desta realidade ouve-se com frequência o discurso de que a CLT está ultrapassada e que precisa ser modernizada. No entanto, não é isso o que ocorre. A chamada “modernização” é um verdadeiro retrocesso na medida em que elimina uma série de direitos conquistados e recoloca o proletariado numa situação de vulnerabilidade nas relações de trabalho frente ao empregador, semelhante ao século XIX. A diferença é que agora, estamos cercados de tecnologias digitais. Vargas, na CLT, propunha conciliar o inconciliável – interesses do proletariado e dos patrões. As reformas da legislação trabalhista não deixam dúvida que apenas visam legitimar a exploração cada vez maior do patrão e prejudicar a vida do trabalhador.

Na disputa pela narrativa que envolve as reformulações da CLT, um dos aspectos mais comentados, a socialdemocracia afirma que jamais reivindicou que o negociado valesse sobre o legislado, ao mesmo tempo em que a direita e a extrema direita afirmam exatamente o contrário. É sabido que “nunca” e “sempre” são palavras que dificilmente se aplicam a processos sociais. Tudo depende da correlação de forças que se estabelece num dado momento histórico. No auge da ditadura civil militar a burguesia estava mais forte e por isso o negociado lhe era mais favorável, realidade que mudou entre o fim dos anos 1970 e 1990, e que atualmente volta à cena. Nesse momento as classes dominantes estão claramente nos desafiando a lutar. Assim, o proletariado consciente não deve se limitar a encampar a defesa de uma legislação “protetiva” que venha do Estado, mesmo admitindo que ela seja necessária para garantir patamares mínimos de sobrevivência. O Estado burguês tem lado, por isso jamais será um mediador isento entre os exploradores e o proletariado. O papel do proletariado revolucionário é a defesa dos interesses legítimos da nossa classe e a construção de suas próprias formas de gerir a produção. Para isso precisa estar preparado para o enfrentamento para o qual está sendo convocado por meio da auto-organização livre e independente. Já perdemos muito. Precisamos mudar o rumo dessa história.♟