Contexto geral
O estado de Oaxaca tem aproximadamente o tamanho de Pernambuco sendo bastante conhecido pelo turismo. Abriga aproximadamente 16 etnias indígenas, é uma das regiões mais pobres do México e sofre historicamente com injustiças e discriminações. Quase 80 % de sua população vive em condições de extrema pobreza. No entanto, a partir das lutas ocorridas em 2006 passou a fazer parte da “geografia política e revolucionária” mexicana e mundial pelas características que o processo de luta assumiu.
As jornadas populares de Oaxaca começaram no final de maio de 2006, época de campanha salarial do magistério. Como em todos os anos, o movimento dos professores saiu às ruas pleiteando aumento salarial e melhores condições de trabalho. O governo local se recusou a abrir canais de negociação. Naquele ano, porém, a atmosfera política do país era outra, tendo o proletariado protagonizado lutas importantes. Em abril, no estado de Michoacán, os trabalhadores da metalúrgica Sicartsa realizaram uma greve, ocupando os locais de trabalho, em defesa da autonomia organizativa e contra a ingerência do governo sobre o sindicato. No início de maio, em San Salvador Atenco, houve uma grave crise em função da negativa do governo municipal em outorgar aos camponeses um espaço público para a venda de seus produtos. A repressão violenta foi um denominador comum a essas lutas. Além disso, dois anos antes Ulisses Ruiz Ortiz “venceu” as eleições para governador de Oaxaca sob sérias acusações de fraude e compra de votos. Outro ingrediente para efervescência política nessa época foi o resultado das eleições presidenciais. Felipe Calderón, da direita tradicional, ganhou com uma vantagem inferior a 1% em relação ao outro candidato, Andrés Manuel López Obrador, da socialdemocracia, gerando fortes protestos em todo país protagonizados, sobretudo, pelos apoiadores de Obrador (o Lula mexicano).
A luta em si
O processo de lutas em Oaxaca começou em 22 de maio, quando 70.000 trabalhadores da educação iniciaram uma greve por reajuste salarial, indo além ao incorporar à sua pauta a defesa da educação pública, exigindo melhor estruturação física das escolas, fornecimento de uniformes, merendas e livros para os alunos. Logo nas primeiras semanas, diante da negativa do governo em negociar, ocorreram importantes mobilizações de apoio à luta, como a ocupação das instalações de Petróleos Mexicanos (PEMEX), bloqueios de estradas e a formação de um acampamento permanente na praça central e nas ruas principais da cidade. Sob a insígnia “professores lutando também estão ensinando” os proletários da educação viram se juntar àquela luta outros setores sociais como pais e alunos, estudantes universitários, proletários de diversas categorias, a população em geral e cerca de 300 organizações, formando a Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca- APPO, tendo sua unidade evidenciada na marcha de 6 de junho, que reuniu quase 400 mil pessoas e cuja pauta reivindicativa fundiu economia e política ao incluir a destituição de Ruiz. O processo decisório da APPO seguia as tradições indígenas, que buscam o consenso, mesmo que para isso as discussões demorem dias. Apesar da limitação do eixo reivindicativo a luta se ampliou e os professores ocuparam 7 municípios no estado. A violência, levada a cabo por militares, policiais e exército privado do governador, foram constantes durante toda a greve e ocupação das cidades. A forma de defesa foi a construção de barricadas que pretendiam barrar o avanço das forças repressivas que, em mais de uma ocasião, usaram helicópteros de onde lançavam bombas de gás e tiros, nem sempre de borracha. Ingenuamente a APPO sempre insistiu numa atuação pacífica, exemplo disso foi a proposta de fazer 3 mil professores caminharem por 19 dias a pé até a Cidade do México, distante 560 km, com intuito de acampar em frente a instituições governamentais e impedir seu funcionamento para que fosse aberto o diálogo. Diante da intransigência e das reações violentas do governo, iniciaram uma greve de fome.
A paz democrática
A repressão que o Estado lançou contra a população de Oaxaca expõem claramente a violência democrática. A cidade de Oaxaca permaneceu mais de 5 meses como um barril de pólvora onde a presença de corpos policiais e paramilitares se encarregou do terror estatal. Invasões a domicílios, sequestros, torturas, assassinatos e estupros foram os mecanismos que o Estado utilizou para estabelecer “a ordem e a paz”.
Frente às mobilizações, o sistema mostrou abertamente sua natureza repressiva para muito além da repressão a manifestantes. A incursão das forças militares e policiais em Oaxaca não teve como objetivo apenas o extermínio da APPO, mas sobretudo estender o terror como mecanismo de advertência e ameaça para o conjunto do proletariado. No chamado Estado Democrático de Direito, tão defendido pela esquerda liberal, todas as vezes em que o exercício das liberdades individuais e coletivas é percebido como uma ameaça – por ocasião de uma manifestação que vai além do itinerário planejado, da ocupação de uma empresa que dura mais do que o normal, de uma publicação que ultrapasse os limites considerados aceitáveis -, a democracia trata de identificar seus “inimigos” para neutralizá-los ou, se necessário, eliminá-los. O que determina a amplitude da liberdade de expressão, reunião e associação não é a letra da lei, mas o requisito para manter a ordem capitalista. Ao contrário da ditadura, a democracia proíbe e reprime apenas quando as circunstâncias o exigem. Sua superioridade sistêmica está na capacidade de englobar, absorver, assimilar. O saldo em Oaxaca dessa realidade é de mais de 100 mortos, inúmeros feridos e muitos desaparecidos.
“Os proletários estavam defendendo uma comunidade, produzindo-a como comunidade de luta; uma comunidade assim só pode se manter se muda as relações sociais: não foi o caso.” — Gilles Dauvé & Karl Nesic
Alcance global: posse dos próprios meios de comunicação e mídias alternativas – Homenagem a Brad Will
Os monopólios da comunicação se calaram ou deturparam o conteúdo daquela revolta, noticiando vandalismo, congestionamento das ruas, prejuízos econômicos e restrição ao direito de ir e vir da população. Consideravam urgente voltar à “normalidade”. Mas, pela primeira vez os professores tiveram seu próprio meio de comunicação – a Rádio Plantón que dialogava diretamente com a população e abria espaço para todos se manifestarem. A rádio serviu como instrumento organizativo e cumpriu também um papel de auxiliar na defesa, na medida em que informava em tempo real onde havia ataques dos policiais e paramilitares a serviço do governo. Várias vezes seus equipamentos foram danificados como tentativa de impedir seu funcionamento, mas o movimento ocupou primeiramente a rádio universitária, de onde passaram a ser feitas as transmissões e, no auge das mobilizações chegou a ocupar 12 rádios comerciais e o canal de tv oficial do governo. Esse canal foi ocupado exclusivamente por mulheres, que auto-organizadas levaram ao ar uma programação que buscava contar em suas palavras “um pouco da verdade sobre as lutas em Oaxaca”. Foi a possibilidade de transmissão independente que chamou a atenção das mídias alternativas, que proliferam mundo afora, reunindo grupos de jornalistas independentes que vão aonde a mídia corporativa não quer estar, construindo e compartilhando informações através da prática diária de resistência às “verdades” impostas pela comunicação de massa. Um dos jornalistas que fazia esse trabalho, Brad Will, foi morto em Oaxaca enquanto gravava o ataque de pistoleiros a serviço de Ulises Ruiz, contra as barricadas. O jornalista foi alvejado por policiais que disparavam contra os manifestantes. Mesmo morto, sua câmera continuou gravando o ataque paramilitar armado à APPO. Em todos os continentes aconteceram manifestações em frente às embaixadas mexicanas em solidariedade aos lutadores oaxaquenhos.
“Ser autônomo é dar a si mesmo sua própria lei. É algo que não resolve nada, mas que levanta um problema, uma necessidade vital. Isso já é muito.” — Gilles Dauvé & Karl Nesic
Breve balanço crítico da luta em Oaxaca
A criação da APPO foi um saldo positivo pois estimulou a participação ativa das pessoas e sua auto-organização. Em novembro, ainda no desenrolar dos enfrentamentos, a APPO realizou um congresso onde foram eleitos 250 delegados estaduais. Tal iniciativa foi um passo no sentido do estabelecimento de uma instituição da transformação em contraposição às instituições da conservação, configurando um esboço de duplo poder, uma espécie de Sistemas de Conselhos (soviets) que não chegou a se confirmar. Entretanto, a heterogeneidade de sua composição, admitindo a participação de políticos profissionais e sindicatos, que naturalmente disputaram a hegemonia da Assembléia, somada à ilusão pacifista, gerou fragilidades.
As barricadas foram espaços espontâneos de articulação e convivência, que se espalharam por toda a cidade, onde as pessoas se auto-organizaram, solidarizaram-se, superaram preconceitos e avançaram sua consciência para além dos padrões individualistas e identitários impostos pelo sistema.
O controle dos meios de comunicação, embora fundamental, foi subutilizado, ficando restrito à agitação, informações gerais e alertas contra ataques policiais. Poderia ter sido usado para explicar causas e possíveis desdobramentos do movimento e, com isso, elevar o nível de consciência da população em luta.
Apesar dos limites e insuficiências, a experiência de Oaxaca foi importante na medida em que materializou uma outra forma de participação que não as conduzidas pelas organizações oficiais do capital, generalizou a mobilização para muito além da categoria inicialmente envolvida, propiciou o exercício da solidariedade na prática e, sobretudo, demonstrou ao proletariado que auto-organizar as lutas é possível ainda hoje, não se tratando de algo ultrapassado defendido por uns poucos saudosistas. A APPO continua existindo e atuando, assim como muitas das organizações que se formaram à época. ♟