2020: o ano da Pandemia e da paralisia da esquerda

2020: o ano da Pandemia e da paralisia da esquerda

Este ano começou com um acontecimento imprevisível e de abrangência internacional: a Pandemia da Covid-19. Em outros momentos da história poderia se tratar de uma oportunidade para o proletariado. Não pela pandemia em si, mas por demonstrar, mais uma vez, a qual classe serve o Estado: a mesma que lhe impõe o pagamento dos custos decorrentes da sua incapacidade em gerir as tragédias que assolam a humanidade. Uma oportunidade que não se deve apenas à crise econômica que, diga-se de passagem, já se avizinhava, independente da Pandemia – relatório do Federal Reserve Bank já apontava queda de 9,8% no consumo de bens de duráveis nos EUA, no primeiro trimestre de 2020, antes de qualquer efeito de lockdown, e a sua produção industrial já estava em queda por dois trimestres consecutivos. Fora este aspecto econômico, há uma crise humanitária que coloca um holofote na resposta de quem tem o controle da sociedade. Neste boletim vamos observar quais foram as consequências do controle da sociedade nas mãos de gestores e burgueses, tanto a nível nacional como internacional.

O contexto nacional

O governo Bolsonaro começou o enfrentamento desta crise com diversas trocas de Ministros da Saúde, que se sucederam até chegar na posse de mais um militar, general da ativa. As suas políticas de saúde balançaram entre investimentos federais milionários em medicamentos sem qualquer evidência científica – R$ 652 mil por 500 quilos de cloroquina a um custo 6x maior do que o valor por quilo no ano de 2019, grande parte estocada nos galpões do exército por desuso – e falta de investimento em insumos básicos com evidência comprovada: EPI para os trabalhadores da saúde e acesso universal à água, sabão e máscaras. Além disso, tomou emprestado alguns assistencialismos do PT, dando um novo nome ao Bolsa Família e ao Minha Casa Minha Vida e criou o auxílio emergencial. Com isso, provou que basta uma burguesia atenta aos problemas da classe para fazer o que a socialdemocracia brada aos quatro ventos como conquistas exclusivas dos seus governos “populares”.

Grande parte da esquerda do capital se absteve de criticar as demissões em massa e se dedicou a temas eleitoreiros, como especular que o auxílio emergencial acabaria em 2021. A atuação da socialdemocracia, de levar para o governo a responsabilidade em gerir as demissões e a consequente falta de renda do proletariado, ao invés de apontar a prática das empresas, que em toda crise punem os assalariados ao mesmo tempo que não devolvem o lucro proporcional em épocas de crescimento econômico, demonstra o seu caráter de classe. Quando o proletariado se mobilizou espontaneamente, como no caso dos trabalhadores de aplicativos, os sindicatos rapidamente tentaram envolvê-los no contexto eleitoreiro e dentro da estrutura do Estado. Os raros setores que ousaram fazer greve durante a crise, como os trabalhadores dos Correios, fizeram-na por fora dos sindicatos e enfrentando-os, sem qualquer apoio e invisibilizados pela mídia e pela esquerda.

Como não bastasse jogar os custos da Pandemia nas costas do proletariado, reduzindo jornadas e salários, a burguesia ainda fez mais. É certo que o plano de privatizações de Guedes para leiloar pelo menos 6 estatais em 2020 acabou adiado. Foi finalizada somente a privatização do trecho sul da BR-101 e ficaram mais 114 projetos no horizonte. Mas a burguesia nacional conseguiu implementar outras prioridades: deu andamento aos projetos de entrega das áreas de proteção ambiental ao agronegócio, afrouxando a fiscalização do crescente desmatamento por incêndios na Floresta Amazônica/Pantanal e tentando vetar resoluções que protegem as APP. Ao mesmo tempo incrementou o poder repressivo do Estado ao aprovar a regulamentação de sistemas de videomonitoramento por reconhecimento facial associado à identificação multibiométrica; ampliou a tipificação de crimes cibernéticos; quebrou o sigilo de dados de trabalhadores ao permitir às empresas o acesso ao SINE; e implantou o Córtex – tecnologia de inteligência artificial que usa a leitura de placas de veículos por milhares de câmeras viárias espalhadas para rastrear alvos móveis em tempo real.

Quanto mais elevado o desenvolvimento do capital, tanto mais ele aparece como obstáculo da produção.” — Karl Marx

O contexto internacional

Alguns grupos de trabalhadores se reuniram de forma espontânea, ao redor do mundo, para propor formas de enfrentamento da Pandemia, como uma Central da Grécia, a SETIP, cujas demandas apresentamos no BB#53. Porém, a força desses pequenos agrupamentos que tentavam tomar para si o controle da crise pandêmica nem chegaram perto da força de outros movimentos identitários. Um desses movimentos em especial, marcou esse ano: o patrocinado e prestigiado Black Lives Matter nos EUA. Essa sensibilização midiática massiva, sempre pronta para denunciar episódios, mas não as relações sociais que os promovem, não acontece com questões gerais da classe, que também afetam diariamente a vida das mesmas vítimas.

No Brasil tivemos por seguranças o espancamento até a morte de um cliente negro em um supermercado Carrefour – sendo um deles PM. Mesmo tendo havido protestos por todo país, os holofotes se concentraram no fato de um negro ter sido a vítima. Não minimizamos isso, nem deixamos de reconhecer que grupos específicos (não brancos, mulheres, imigrantes, LGBTQ+) tendem a ser mais visados neste tipo de ocorrência. Porém atentamos para outros aspectos graves do evento, tais como a promiscuidade crescente entre a segurança privada e a estatal, a naturalização cada vez maior da brutalidade policial, que atinge o proletariado como um todo e o histórico de violência envolvendo redes de supermercados, evidenciando que a despeito do espetáculo momentâneo, nenhuma ação é efetivada para coibir definitivamente tais acontecimentos.

O nível de enfrentamento à Pandemia, internacionalmente, da mesma forma que no Brasil, veio carregado de muitos obscurantismos. Parecíamos estar em pleno século XIV, vivendo a Peste Negra. Ao apelar para o Estado, o que reforça o Capital, a resposta eleitoral anti-Trump na maior potência mundial e em alguns países dominados por ela indica, quiçá, uma resposta do proletariado de não querer que a roda da história vá ainda mais para trás.

Mais uma vez como no Brasil, a burguesia não se limitou a transferir toda a responsabilidade pela recuperação da crise ao proletariado. Ela foi além: com a eleição de Biden ela não só recolocou no poder da maior potência imperialista a mesma política internacional que apoiou os movimentos neonazistas da Ucrânia, referência internacional para a ascensão da extrema-direita, como também conseguiu a bênção da esquerda do Capital, em nível mundial.

Mas o ano não foi só de derrotas para o proletariado internacional. Na última semana de 2020 foi aprovada na Argentina uma lei que garante às mulheres a realização do aborto de forma segura, legal e gratuita até a 14ª semana de gestação e a qualquer tempo em caso de estupro ou risco de morte. Comemoramos, mas não temos ilusões. A mobilização para garantir o cumprimento desta ou de qualquer outra conquista, lá ou aqui, tem de ser permanente, pois as forças do reacionarismo nunca dormem.

Como o processo de reprodução depende da acumulação de capital e, dessa forma, da massa de mais-valia que faz a acumulação possível, é dentro da esfera de produção que os fatores decisivos (embora não sejam os únicos) para a passagem da possibilidade de crise para uma crise real devem ser encontrados.” — Paul Mattick

Apontamentos para 2021: autoatividade

No Brasil os bastidores da eleição para presidente da Câmara dos deputados apontam que 2021 terá muito espaço para oportunismo, começando pela união de recentes “inimigos”. A nova jogada une PT e PSL, entre outros, até então arqui-rivais na “luta contra a corrupção”, para levar o candidato de Rodrigo Maia ao poder numa “frente ampla” de oposição ao bolsonarista Arthur Lira, do PP. Não há surpresa alguma nesses acordos, antagônicos só na aparência, como já demonstraram as eleições municipais de 2020. Destacamos aqui a união dos capitalistas consequentes pelo fortalecimento das “instituições democráticas”, pauta unificadora dos diferentes matizes do Capital em prol da manutenção do sistema vigente e da agenda de reformas burguesas.

O desenvolvimento da vacina contra o SARS-CoV-2 pelo complexo médico-industrial gera um contexto difícil para o proletariado: por um lado devemos exigir a compra massiva de vacinas e insumos necessários para a imunização, com vistas a proteger a vida do proletariado – que evidentemente nunca parou durante a pandemia – por outro devemos ficar atentos às grandes limitações de uma vacina cujos ensaios clínicos são controlados exclusivamente pela indústria, sem acesso aos dados brutos para avaliações não somente sobre a eficácia como aos efeitos adversos. Produto de parcerias público-privadas mundiais, seus investidores querem o retorno a qualquer custo: o CEO da Pfizer vendeu 62% de suas ações após o anúncio de eficácia da sua vacina. É improvável que os dados contrariando a eficácia fossem publicados. É preciso ter acesso irrestrito a quaisquer dados de pesquisa, com quebra de todas as patentes, cuja finalidade é apenas manter o lucro mesmo diante de calamidades públicas.

Além disso, mesmo que eficaz, o controle da pandemia não é possível exclusivamente através da vacina. O acesso a itens básicos como água e sabão é fundamental para combatê-la, bem como a reorganização radical da estrutura das cidades, da moradia urbana aos transportes coletivos.

Embora sua incompetência seja recorrente, como a burguesia mais uma vez venceu a crise? Por que mais uma vez o proletariado perdeu a oportunidade histórica de tomar para si as rédeas da sociedade? Novamente o requentado falso dilema do século XX “democracia x fascismo” soube habilmente vincular qualquer mudança social à manutenção das instituições vigentes. Em vez de defender e propor avanços para a vida da maioria, limita-se a defender a sociedade tal como ela já é. Para conquistar o controle da sociedade precisamos resgatar as organizações por local de trabalho, de moradia e de estudo. Organizados da mesma forma que almejamos a transformação social, as discussões sobre qual nova sociedade queremos devem voltar a fazer parte do cotidiano dos conflitos sociais.♟