Em meio à crescente perda de popularidade e de apoio político dos que o elegeram, além de diversas acusações e investigações judiciais, Bolsonaro propaga cada vez mais um discurso de violência institucional em que afirma ter o apoio das Forças Armadas caso instituições do Poder Legislativo, Judiciário ou outras lideranças políticas ameacem seu governo. E além de os Ministérios estarem abarrotados de oficiais militares, em número superior aos da ditadura de 1964-1985, as constantes ameaças de uma ruptura institucional, talvez por um estado de sítio, também são proferidas com a convicção pessoal de que receberia apoio de outros órgãos da repressão estatal, bem como de uma suposta resistência armada de civis bolsonaristas. Mas cuidado! A simples oposição a tudo isso também é uma armadilha.
Ordem Fragmentada
Se das cúpulas da Aeronáutica e Marinha não emana um suporte ostensivo ao governo do atual presidente, é o Exército que se mostra um grande artífice dessa gestão aparentemente temerária. Se já em 2014 os generais abriam seus quartéis para que Bolsonaro discursasse às tropas, em 2019 tiveram abertas as portas do planalto como concretização de um projeto de governo que planeja uma guinada política à direita no país, não só na economia, como na educação e na cultura. E diante da resistência dos setores mais progressistas, usam Bolsonaro para constantemente criar um suposto caos nas instituições da democracia burguesa. Assim, quando essas não manifestam concordância com esse projeto de governo são acusadas de não funcionar corretamente, ou então de serem antidemocráticas quando tentam frear os atos do Executivo Federal. Nas duas hipóteses a mensagem que querem transmitir é a de que o Estado precisa passar por mudanças profundas e que só as Forças Armadas são capazes de tutelar essa transformação, pois seria esse o seu papel histórico desde que fundaram a República.
Outro setor da repressão estatal que já demonstrou e vem demonstrando simpatia ideológica e até mesmo alinhamento político ao presidente, em alguns casos de forma organizada, são os militares estaduais, forças auxiliares e de reserva do Exército, que em todo o país somam cerca de meio milhão de agentes. O episódio do motim realizado em fevereiro no Ceará é emblemático, pois além da adesão explícita daqueles militares ao presidente, receberam apoio moral do mesmo e do então Ministro da Justiça Sérgio Moro. Também houve um financiamento de 120 milhões de reais nos últimos seis anos, de origem desconhecida, às associações de militares que organizaram as paralisações e os toques de recolher truculentos por todo aquele estado, ações típicas das milícias do Rio de Janeiro.
Parece haver uma atmosfera de quebra de hierarquia nas Polícias Militares nos estados comandados por governadores que possam representar uma ameaça eleitoral ao projeto bolsonarista. Além do Ceará, de governador petista e reduto de Ciro Gomes, é possível citar a Bahia, também sob o governo do PT, que ainda em fevereiro foi palco da caçada a um miliciano ligado ao presidente sem o conhecimento do governador, como se estivessem cumprindo ordens superiores a ele. No Rio de Janeiro esse fenômeno já está consolidado há anos, e é notável o poder das milícias não só sobre a tropa mas sobre a política em geral no Estado; assim, pouco depois de Witzel começar a sonhar com a presidência em 2022 e tornar-se desafeto público de Bolsonaro, a ALERJ abriu processo de impeachment do governador por unanimidade. Dória, em São Paulo, já começa a sentir sérias hostilidades por parte de várias patentes da corporação, além de uma crescente politização pró-governo federal entre os praças, seja nas ruas ou nas redes sociais.
“Em Novembro de 1921, discursando em Roma no congresso que transformou o seu movimento em Partido Nacional Fascista, Mussolini colocou as alternativas com clareza: ‘Estaremos com o Estado e a favor do Estado sempre que ele se mostrar um guarda intransigente, um defensor e um propagandista das tradições nacionais; substituir-nos-emos ao Estado sempre que ele se revelar incapaz de enfrentar e combater as causas e os elementos de desagregação interna dos princípios da solidariedade nacional; mobilizar-nos-emos contra o Estado se ele vier a cair nas mãos de quem ameaça a vida do país e atenta contra ela’” — João Bernardo
Mas todo esse apoio não é apenas fruto de uma identificação ideológica. Aos oficiais das PMs, Bolsonaro distribui cargos na administração federal, e às baixas patentes declara apoio político às causas das categorias, como por exemplo no diálogo direto que possui com as associações de policiais em prol de uma lei orgânica que reivindicam há anos. Além disso, promove uma constante expectativa de aumento nos ganhos individuais de cada membro, tal como na Emenda Constitucional 101 de 2019, que permite a acumulação de cargos públicos por militares estaduais possibilitando-os ocuparem postos na educação e na saúde públicas sem prejuízo da atividade militar.
Tal influência política também está sendo construída na Polícia Federal, órgão chave para manter ou derrubar presidentes em exercício. Tanto com indicações para órgãos e ministérios quanto com a articulação de medidas legislativas em prol das carreiras de agentes e delegados, criando centenas de funções gratificadas, mesmo não havendo um apoio político coeso ao presidente, há uma porcentagem relevante de simpatizantes nesse órgão.
Por fim, Bolsonaro ainda fala em armar os “cidadãos de bem” para evitar um suposto golpe que o tiraria do poder. Só no ano de 2019, mais 44 mil armas de fogo foram registradas legalmente no Brasil por pessoas físicas, sendo que nenhuma custa menos de 3 salários mínimos e cada proprietário tem direito a adquirir até 6 mil munições por ano.
“A democracia metamorfoseia-se em fascismo e vice-versa, de acordo com as circunstâncias, numa sucessão de composições políticas que asseguram a preservação do Estado como garantia do capitalismo. Mas o retorno à democracia está longe de produzir, em si mesmo, uma retomada da luta de classes. Na verdade, os partidos dos trabalhadores quando chegam ao poder são os primeiros a falar em Capital nacional. Antes, o sacrificio material e o abandono da luta de classes foram justificados pela necessidade de “derrotar o fascismo”. Depois, foram mantidos, mas em nome do ideal de resistência forjado na luta contra o fascismo. As ideologias fascista e antifascista são, ambas, adaptáveis aos interesses do Capital, de acordo com as circunstâncias.” — Jean Barrot/Gilles Dauvé
A Ideologia do Medo
Não é possível dizer se policiais militares alcançariam um protagonismo político como os da Bolívia que foram às ruas para derrubar Evo Morales há poucos meses, ou se civis armados teriam disposição para defender a permanência de Bolsonaro no poder como na Venezuela de Chávez e Maduro, mas é algo inédito desde o fim da última ditadura no Brasil o fato de que boa parte dos integrantes da repressão estatal têm um presidente eleito para chamar de seu.
Porém, o maior trunfo do projeto político que se encontra no poder é estar conseguindo enquadrar à direita do espectro político democrático tanto a esquerda do capital quanto setores populares. É o que vem ocorrendo nas mais recentes manifestações de rua contra Bolsonaro que clamaram por democracia, ou seja, pediram para que as instituições da democracia burguesa não sejam abaladas pelo atual governo. Sob a insígnia antifascista, residem oportunistas que chegaram ao poder de Estado e sonham para lá retornar ou permanecer, e que com um discurso de aliança de classes engajam muitos proletários na luta por algo, em tese, “menos pior”, por um Estado ainda mais forte que combata arbitrariedades. Não se recordam do que as reformas democráticas fizeram com suas vidas nas últimas décadas?
Essa esquerda, que parece ter encontrado um mote político para as próximas eleições, novamente tenta convencer o proletariado de mentiras como a de que é de reforma em reforma que se constrói o socialismo, e que por isso é preciso preservar as instituições a qualquer custo para que as supostas conquistas democráticas continuem em disputa. Nesse sentido, dirão que o conjunto das Forças Armadas deve ser legalista e respeitar o jogo democrático, irão propor lutas por uma polícia mais cidadã e até pela desmilitarização dela, mas a verdade é que sempre sonharam e tentaram uma penetração política entre as tropas, principalmente perante as associações militares, tratando-os como mais uma categoria de trabalhadores insatisfeitos. Porém é preciso lembrar que toda conquista sindical que os agentes das forças estatais obtiverem, inevitavelmente servirá para incrementar a repressão ao proletariado. Onde impera nacionalismo e hierarquia não há espaço para a emancipação dos explorados.
Como já abordamos no #BB 35, para o proletariado com consciência de classe o pior produto do fascismo é o antifascismo, que rejeita a crítica radical ao Estado e oculta o fato de que qualquer regime burguês aparentemente democrático e popular se transformará imediatamente num regime cruel caso o capitalismo esteja sob ameaça. Bolsonaro fará o que os capitalistas acharem que ele deve fazer, a diferença para os presidentes anteriores é que ele declara isso abertamente. Se depois de tantos anos, mesmo em meio à pandemia, o proletariado ensaia um retorno às ruas, que seja para fazer mais por si próprio enquanto classe, que se disponha a tarefas mais dignas do que demonstrar medo publicamente e apenas tentar evitar um mal maior.♟