A Primeira Guerra Mundial marcou uma profunda ruptura na história europeia e mundial. Impérios e dinastias seculares foram apagadas do mapa, dando lugar a novos países, alguns deles repúblicas inspiradas num nacionalismo étnico e/ou linguístico. Na Rússia, o regime instaurado pela Revolução de Outubro de 1917 ameaçava subverter toda a ordem existente e servia de inspiração para militantes revolucionários do mundo inteiro. Abriu-se uma época de grandes transformações na qual a ideia de “mudar o mundo” deixou de ser uma utopia: a prática revolucionária estava na ordem do dia e a Alemanha foi um dos países que viveu intensamente aquele período.
No dia 4 de novembro de 1918, durante a I Guerra Mundial, soldados da marinha alemã se rebelaram contra uma ordem vinda de seus superiores para travar uma batalha perdida, tomaram os navios e aportaram na cidade de Kiel, onde foram recebidos entusiasticamente pela população local. Esse foi o início da chamada “Revolução Alemã”. Em alguns dias este movimento se espalhou por todo país: quartéis, palácios e fábricas foram ocupados e os governos substituídos por conselhos organizados pelos trabalhadores. Entender o que se passou ali pelos três anos seguintes (até 1921) possui uma linha direta de entendimento com acontecimentos do Brasil dos últimos 38 anos (desde 1980 – ano da fundação do PT).
Assim como na Alemanha de 1918, ainda hoje existem muitas pessoas que sabem que o modo como está estruturada a nossa sociedade não atende às necessidades das maiorias e pretendem transformá-la radicalmente. Mas, para alcançar este objetivo, é fundamental que se conheça as experiências revolucionárias do passado, para aprender com os erros cometidos outrora e evitar repeti-los no presente ou no futuro.
Em 7 de novembro, na Baviera, o conselho local proclamou a República de Weimar e, em 48 horas, o imperador abdicou. Assumiu um governo de coalizão chefiado pelo social-democrata Friedrich Ebert, operário seleiro que foi o presidente da Alemanha até sua morte em 1925. Neste mesmo ano, em sua homenagem, o SPD (Partido Social-Democrata da Alemanha, fundado em 1875) criou a Fundação Friedrich Ebert que, não por acaso, contribui com o PT desde 1980. Financeiramente inclusive. Assim, do mesmo modo que o SPD foi o primeiro PT da história, Ebert foi o primeiro Lula da história, ou, Lula é o Ebert brasileiro com 90 anos de atraso.
No final de 1918, as classes sociais se reposicionaram e a luta de classes começou a clarear. O campesinato permaneceu atrelado ao capital, logo, conservador e reacionário. A burguesia e a nobreza se recolheram da cena pública da política devido ao desmoronamento da capacidade do Estado em fazer valer seus interesses pela força (polícia e exército estavam se dissolvendo com deserções generalizadas) e fizeram um acordo secreto com o SPD para instituir os paramilitares dos Freikorps (do alemão “corpos livres” ou “corpos francos”), nome dado às tropas improvisadas onde se integraram os veteranos do esfacelado exército imperial alemão. Subjetivamente ultranacionalistas e anticomunistas radicais, os Freikorps foram, durante a República de Weimar, fundamentais para esmagar o movimento de proletários e soldados naquilo que ele tinha de revolucionário até que o SPD tivesse condições adequadas e força suficiente para realizar a sua política, que incluía re-instituir as forças armadas e a polícia. O proletariado se encontrava dividido.
“Hoje em dia, as questões nacional e sindical são dois critérios cruciais para determinar se uma orientação se agarra no passado que passou (pois existem passados atuais) ou se prepara a revolução.” — Jean Barrot e Denis Authier
A maioria operária seguiu o SPD (a esta altura já depurado de comunistas; no PT, esta depuração da esquerda revolucionária teve início em 1987), cujo projeto de poder era transformar o impulso revolucionário do proletariado em alavanca para fazer uma transição política, há muito defendida, coerente com suas concepções de que se deveria chegar ao socialismo pelo parlamento via implementação de reformas graduais (qualquer semelhança com o chamado “socialismo petista” de 1990 não é mera coincidência). Na materialidade da política, tal projeto se realizaria em um reordenamento jurídico amplo que instaurasse o regime democrático por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte que estabelecesse um poder fundado no direito e na lei. Fiel ao legalismo contrarrevolucionário histórico que marca essa corrente, durante o Congresso Constituinte de 1988, o PT foi o único partido a apresentar um projeto completo de constituição para o Brasil.
De modo geral, a minoria do proletariado era contrária à Constituinte e tinha como palavra de ordem “todo poder aos conselhos”. Se subdividia entre aqueles que tinham diferenças pontuais com a linha geral do SPD (caso do USPD – sigla em alemão do Partido Social-Democrata da Alemanha Independente – uma cisão de esquerda do velho partido de 1875), aqueles que falavam vagamente de uma República Socialista sem muitas definições (caso da Liga Espartaquista de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht) e aqueles que entendiam que os conselhos deveriam funcionar de modo similar aos soviets na Revolução Russa de 1917 (caso dos IKD – Comunistas Internacionais da Alemanha que, em dezembro de 1918 fundaram o PC alemão (KPD) juntamente com a corrente Espartaquista e, menos de dois anos depois, quando se consolidou a total subordinação do KPD a Moscou, o abandonaram para serem uma das tendências fundadoras do KAPD – Partido Comunista Operário da Alemanha em abril de 1920).
“A marca da força subversiva da esquerda alemã é, sem dúvida, que ela nos impede de cair na complacência revolucionária, na idolatria do proletariado e na crença anti-materialista de que o comunismo é inevitável. Por ter sentido profundamente a derrota dos mais combativos proletários, ela nos ajuda a não sermos derrotados nas próximas vezes.” — Jean Barrot e Denis Authier
Momentaneamente impossibilitado de atacar de frente o sistema de conselhos, o SPD o destruiu por dentro, ocupando a maioria de seus lugares de decisão e encaminhamentos, tornando-os instituições de colaboração com o Estado e o governo ao invés de fortalecê-los como instituições de duplo poder. Ao invés da revolução no sentido do comunismo, a grande tarefa histórica que o SPD determinadamente se colocou foi trocar a roupagem monárquica do capitalismo na Alemanha e vesti-lo com a roupagem democrática. No lugar de uma ruptura radical de toda estrutura social, que caracterizaria uma revolução proletária, o que ocorreu foi uma transição política, resultado de enfrentamentos moderados, característicos das revoluções burguesas. O exemplo mais pedagógico dessa determinação reacionária foi o assassinato de Karl e Rosa pelos Freikorps por ordem direta de um ex-companheiro de partido deles, o social-democrata Gustav Noske, ministro da defesa do governo Ebert. Saldo da “Revolução Alemã” da social-democracia: propriedade privada intocada; instituições militares e policiais modernizadas; nobres convertidos e burgueses em posições-chaves no poder; posição inalterada da classe proletária na sociedade.
Da mesma forma que nos 14 anos de governos do PT (2003-2016), existiram avanços nos 14 anos da República de Weimar (1919-1933) instituída pelo SPD: estabelecimento da jornada de trabalho de 8 h e semanal de 48 h, leis de proteção aos trabalhadores, reformas tributárias progressistas, estabelecimento de um sistema nacional de seguro-saúde e programas de seguridade, sufrágio universal. Isso sem falar que uma conjuntura revolucionária, mesmo breve e derrotada, produz alterações profundas na subjetividade das pessoas. Prova disso é que o mesmo período testemunhou o surgimento do movimento expressionista alemão, especialmente no cinema, e da escola Bauhaus na arquitetura e no design. E do mesmo modo que 14 anos de hegemonia estatal do SPD resultaram na vitória eleitoral de Hitler, 14 anos de hegemonia estatal do PT resultaram na vitória eleitoral de Bolsonaro.
Para o proletariado com consciência comunista, os maiores tesouros desse período são: introjetar que a social-democracia é uma corrente de direita (esquerda do capital), e que a luta da parcela revolucionária do proletariado alemão nos deixou a forma institucional concreta do comunismo: o sistema de conselhos.
Se Ebert foi a tragédia que preparou o nazismo, Lula foi a farsa que preparou o retorno da extrema-direita. Hoje, celebrar enquanto classe o centenário da Revolução Alemã significa não cair na armadilha de uma oposição social-democrata ao novo ascenso da extrema-direita. A história é contínua e — porque o capitalismo também o é — global. Portanto, a classe proletária de todo o mundo terá sua memória testada mais uma vez para reconhecer, dentre as alas da dita esquerda, os falsos amigos que por ora não estão no poder, mas que, uma vez lá, não hesitarão em fazer de novo as alianças com as forças mais reacionárias da sociedade para anular e desmanchar a autoconstituição do proletariado em classe revolucionária. ♟