O que aprender com o movimento dos caminhoneiros

O que aprender com o movimento dos caminhoneiros

A mobilização ocorrida durante a segunda quinzena do mês de maio pelos setores de transporte de carga, por sua intensidade, força e capacidade em atingir as bases do funcionamento social, exige extrair o máximo de ensinamentos e todas as consequências para que se possa intervir de modo coerente em relação aos interesses do proletariado.

Para encontrar uma linha de ação proletária, precisamos articular diferentes aspectos. A começar pela materialidade do setor de transportes, com base nas categorias da economia política. Este setor se insere no âmbito da distribuição que por sua vez é parte da própria produção, pois a segunda não se realiza sem a primeira. Logo, ser proprietário de um caminhão é ser proprietário de um meio de produção equivalente a uma certa quantidade de terra ou de uma fábrica. Isto significa que o caminhoneiro dono de caminhão se inclui entre as classes capitalistas, independentemente do número de caminhões que possua.

Um segundo aspecto a considerar está em não raciocinar com “cabeça jurídica”, pois se a propriedade ou o controle sobre um ou vários caminhões agrupa tais indivíduos nas classes capitalistas — burguesa na primeira situação e gestora na segunda — existem muitos trabalhadores no setor de transporte que são contratados como pessoa física ou jurídica quando na verdade são trabalhadores assalariados disfarçados de “autônomos”, “empresários” ou “profissionais liberais” a depender da forma de contratação. Tal mascaramento objetiva contornar encargos trabalhistas e tentar desviar o conflito entre capital e trabalho para fora do interior das empresas que distribuem mercadorias e/ou são especializadas em transportar cargas. Essa prática não é exclusividade do setor, nem se restringe ao Brasil. Pelo contrário, trata-se de um expediente em expansão aqui e em várias outras atividades econômicas pelo mundo.

O que determina o conteúdo real de uma forma de pensamento ou de ação, não é a etiqueta sob a qual se apresenta, mas seu caráter de classe.” — Anton Pannekoek

E como se dá essa operação de ocultamento (ideologia) na contratação de motoristas? Confundindo o verdadeiro trabalhador autônomo — aquele que não está submetido ao arbítrio alheio e, por isso, presta serviços para diferentes clientes sem depender, nem estar subordinado a nenhum deles e tem margem para negociar o preço do frete que vai cobrar — e que não constitui a maioria do setor, nem tem uma posição de protagonismo no transporte de cargas no Brasil, com o trabalhador assalariado que está subordinado às regras empresariais para realizar as atividades de distribuição (exclusividade, horários e preços de frete unilateralmente impostos pela contratante, fixação de prazos para entregas, monitoramento do trabalho por satélite/GPS, pagamento exclusivamente pelo número de fretes realizados, multas por atrasos e transferência dos custos dos insumos — combustível, pneus, manutenção). E para que essa ideologia funcione ainda melhor, os capitalistas do setor lançam mão de uma série de nomenclaturas (carreteiro/agregado — Transportador Autônomo de Carga (TAC) — Eventual/(TAC) — Agregado, Empresa de Transporte Rodoviário de Cargas — ETC). Em suma, o proletariado do setor (falso autônomo) pode ser facilmente identificado pela autonomia que não possui.

Agora que já separamos o proletariado real da ideologia do “autônomo” é preciso considerar o terceiro aspecto: que interesses de classe a pauta de reivindicações expressa. De uma perspectiva proletária, o centro da luta deveria ser pelo aumento dos pagamentos por frete, que como já vimos, expressa um assalariamento disfarçado e expõe o conflito direto contra as empresas. De uma perspectiva burguesa ou gestorial, a luta central é pela redução do preço do diesel e dos pedágios, que expressa a lógica empresarial de redução de custos de produção e aproxima motoristas de caminhão/caminhoneiros (vendedores de força de trabalho, logo proletários) de patrões (compradores de força de trabalho, logo capitalistas). No movimento de 2018 ficou evidente a hegemonia empresarial na pauta dos caminhoneiros.

Esta questão inclusive foi decisiva para revelar o caráter de classe antiproletário de certa esquerda tradicional no posicionamento sobre o movimento. Em vez de centrar a solidariedade nos “caminhoneiros sem caminhão”, organizações como o PCB, por exemplo, levantaram a consigna da “eleição dos gestores da Petrobrás” como se o central na luta fosse democratizar aquela empresa, e não o combate contra o empresariado transportista.

E assim chegamos ao quarto aspecto a ser considerado para um posicionamento proletário de classe nessa categoria tão heterogênea: como essa materialidade incide na subjetividade dos caminhoneiros. Ao transferir para o trabalhador o risco do negócio, incluindo os custos dos insumos, as empresas têm conseguido desviar da relação de trabalho o foco da luta classista. Aceitando a condição de “autônomo” imposta pelas empresas, o motorista tem visto nos preços dos insumos uma fonte de determinação dos seus ganhos mais importante do que o preço pago pelos seus serviços. Como em outros setores da classe, o proletário que dirige caminhão não se enxerga como tal, e sim como “empreendedor”. Basta constatar que a mobilização para reduzir o preço do diesel não atinge os motoristas de ônibus, pois as empresas de ônibus, por enquanto, assumem a condição de assalariamento dos seus trabalhadores e, consequentemente, o aumento do preço é um problema fundamentalmente das empresas. Seria como se, em vez de lutarem por melhores salários, trabalhadores de siderúrgicas reivindicassem a redução do preço do carvão ou metalúrgicos de montadoras de carros exigissem pneus mais baratos. Como se trata de um problema de consciência de classe, nada impede que em lutas futuras a centralidade da pauta seja por melhores salários.

Toda luta exige conhecer o inimigo, seus recursos, suas forças e debilidades. É a condição primordial. A única que nos permite evitar o desânimo (quando medimos as forças do inimigo) e toda ilusão (quando conquistamos uma vitória parcial).” — Anton Pannekoek

Estes quatro aspectos ajudam a entender porque essa movimentação apresentou características de lockout (paralisação de patrões) e de greve (paralisação de trabalhadores) e o “festival” de erros cometidos pela esquerda (bolchevique e social-democrata) e pela direita (liberal e fascista) tradicionais ao unilateralizar apenas uma destas características, ora apoiando o pólo que lhe é hostil, ora deixando de se solidarizar com o pólo pertencente à sua classe.

Assim, temos os elementos fundamentais para orientar uma ação política do proletariado consciente dentro e fora do movimento dos caminhoneiros e que podem servir para lutas futuras: a) reunir apenas motoristas que não sejam proprietários de caminhão; b) elaborar uma pauta cujos itens atendam exclusivamente a estes; c) mesmo na luta conjunta com autônomos, na hipótese de que existem pontos em comum, manter-se sempre organizados de forma específica e focados nos itens da pauta que lhes interessa.

Em síntese, de forma adaptada, também para este setor vale a consigna lançada por Marx: “Caminhoneiros sem caminhão, uni-vos.” ♟