Como qualquer outro tema, o aborto – uma questão de saúde pública – também se presta para a elaboração de ideologias. Talvez a ideologia mais disseminada pelos adversários do aborto seja aquela que o coloca como mais um método contraceptivo. Como toda ideologia, a intenção é confundir. Por tal motivo, quem o defende precisa começar esclarecendo a diferença entre métodos contraceptivos (preservativos, “tabelinha”, pílula, coito interrompido) e o último ato de soberania da mulher sobre o seu próprio corpo contra uma gravidez indesejada (aborto). Esta distinção é unânime e não há setores que incentivem o procedimento como se fosse uma política pública a ser adotada. Aborto não é alternativa. Se dá quando todas elas já não são mais possíveis. Justamente para evitar graves e duradouras consequências que se opta por interromper a gravidez.
Outro argumento pelo aborto reside no fato de que a maternidade deve ser concebida dentro de um quadro de realização daquelas pessoas que a entendem como uma opção de felicidade, um ato de amor, que requer planejamento. Jamais podendo ser considerada um fardo, uma punição ou penitência.
Juridicamente, o aborto no Brasil é autorizado em três hipóteses: quando a gestação oferece risco à saúde da mulher, quando a gravidez é causada por estupro ou quando o feto é anencéfalo (sem cérebro). As duas primeiras hipóteses estão previstas no Código Penal de 1940 e a terceira se trata de construção jurisprudencial do STF em decisão de 2012. Tais medidas são incapazes de sanar todas as demandas.
Embora os números sejam difíceis de estimar, ultrapassaram-se os 500 mil atendimentos no SUS por complicações pós-tentativa de aborto entre 2013 e 2015 (100 vezes mais que os procedimentos de aborto legal). Tal quadro se deve ao fato de que o método mais utilizado para o abortamento inseguro – o princípio da infecção, induzida por agulhas caseiras etc. – é doloroso, traumático e, quando não se expele completamente o tecido embrionário, a origem clandestina do procedimento dificulta a procura por socorro médico. Nessa situação, insegurança da paciente, medo de perguntas no hospital, da família e a própria ignorância sobre a gravidade do quadro colaboram para que não haja a atenção que a situação requer. Daí os altos índices de mortandade. Segundo o Ministério da Saúde (2015), no Brasil são realizados aproximadamente 1 milhão de abortos clandestinos por ano e em média 4 mulheres morrem por dia após atendimento médico por complicações decorrentes de aborto clandestino. Por outro lado, o procedimento seguro é considerado pela OMS como 14 vezes mais seguro do que o próprio parto.
“Não é o Estado quem diz o que a mulher deve fazer com seu próprio corpo, ela que deve ter o poder de decisão!” — Autoria desconhecida
A realidade tem mostrado ser impossível conciliar as posições antagônicas acerca desse procedimento tão antigo e difundido entre todas as culturas, classes e camadas sociais. De um lado os que dizem defender a vida ao mesmo tempo em que ignoram as taxas elevadas da mortalidade decorrente do aborto e, de outro, os que defendem que a decisão cabe apenas às mulheres. Tal inviabilidade de um consenso se localiza na impossibilidade de estabelecer – com base em argumentos científico-racionais e não em apelações emocionais, psicológicas ou irracionalismos religiosos – um critério comum do que seja “vida”, de quando ela se inicia e qual deve ser a prioridade social: para vidas concretas (já existentes) ou para vidas abstratas (em porvir). Ora, um amontoado de células não pode ser equiparado a um ser plenamente formado, o que levaria a absurdos como considerar equivalentes o ovo e a galinha. Materialismo Dialético e fé são incompatíveis.
No campo da prática, temos também um claro antagonismo. De um lado os movimentos “pró-vida”, preocupados apenas em induzir a mulher a continuar a gestação indesejada, oferecendo cestas básicas e/ou contribuição financeira. De outro, a necessária luta social para assegurar em todos os âmbitos (jurídico, assistencial, econômico, sanitário, entre outros) a plena expressão de liberdade sexual da mulher e da autonomia sobre seu próprio corpo.
Criminalizar o aborto voluntário é uma violência do Estado contra as mulheres em geral, mas atinge especialmente as mulheres de baixa renda, que não podem pagar os altos custos do aborto seguro, realizado em clínicas clandestinas bem equipadas ou então viajar para países que possibilitam o procedimento.
Politicamente, a temática do aborto demarca claramente três campos: seus defensores (com variadas nuances), seus inimigos declarados e os falsos amigos da proposta (social-democracia). Entre os defensores da adoção do aborto se encontra um amplo leque que abarca desde religiosas que entendem que as mulheres devem decidir até integrantes do proletariado com consciência anarquista e comunista, além das camadas médias progressistas e liberais sinceros. O espectro dos inimigos declarados do aborto engloba reacionários, conservadores e fanáticos religiosos defensores de um conceito de “defesa da vida” compatível com a defesa da redução da maioridade penal, da pena de morte e até de linchamentos em praça pública. Além de serem contrários até mesmo aos raros casos já autorizados pela justiça, vale lembrar que esse mesmo setor ideológico historicamente combateu a difusão de métodos contraceptivos como a pílula anticoncepcional e a camisinha. Por sua vez a falsidade da defesa do aborto feita pela social-democracia no Brasil, que presidiu o país durante 21 anos (1995 a 2002 com o PSDB e de 2003 a 2016 com o PT/PCdoB) e sempre teve correntes “feministas” e movimentos organizados de mulheres em suas bases partidárias, não tomou sequer uma medida no sentido de descriminalizar o aborto, nem mesmo no de expandir a estrutura do sistema estatal de saúde para uma futura alteração legislativa. Coerente com seus programas de aliança de classes, os quais incluíram na administração do Estado os setores mais conservadores da política, em especial a ala fundamentalista católica (quem se esquece do Opus Dei Alckmin?) e a neopentecostal (Edir Macedo e sua IURD).
“Aborto clandestino e inseguro não são sinônimos. O que determina a insegurança do aborto não é ele ser clandestino; é não ter prática, técnica ou ser realizado em ambiente inseguro. A criminalização do aborto impõe à mulher pobre a busca pelo aborto inseguro e clandestino e para as mulheres ricas a busca pelo aborto clandestino e seguro.” — Jefferson Drezett
Mundialmente, boa parte dos países de capitalismo avançado permitem aborto voluntário até parte da gestação (12ª semana em média). Na América Latina, apenas Cuba, Uruguai e México (só na Cidade do México) possuem leis semelhantes. Destaque-se, porém, que a luta social conseguiu impedir que recentes ofensivas governamentais em alguns países (ex: Polônia e Espanha) retrocedessem tal conquista legislativa.
Por estarmos ainda longe de uma sociedade na qual a mulher decide sobre a sua própria vida, já que o ônus da gestação lhe pesa sobremaneira, a luta organizada para conquistar a possibilidade irrestrita e gratuita da realização do aborto pela mulher que assim desejar continua na “ordem do dia”. Se não como sua libertação integral, ao menos como importante passo rumo à emancipação integral das pessoas exploradas e oprimidas.♟