Especial: o proletariado existe e se amplia – Parte I

Especial: o proletariado existe e se amplia – Parte I

Em seus mais de 500 anos, o capitalismo tem produzido uma quantidade de horrores e demonstrado uma incapacidade constante e profunda de atender às necessidades – materiais e subjetivas – da maioria da humanidade a tal ponto que torna-se obrigatório para esta maioria pensar e praticar formas de substituí-lo. Tal substituição deve se dar revolucionariamente, pois até hoje nenhuma classe dominante abriu mão da sua dominação voluntariamente, teve de ser forçada a isto. E não será diferente com burgueses e gestores.

Realizar uma tarefa dessa magnitude envolve milhões de pessoas que não tenham interesses específicos a preservar e que tenham uma condição de exploração intensificada com o desenvolvimento capitalista. A única classe social que reúne ambas as condições é o proletariado. Contudo, não faltam setores a defender que o proletariado “acabou” ou que se tornou “minoritário”, além de outras ideologias. Desmontar algumas dessas ideologias é portanto o passo inicial a ser dado quando se pensa na possibilidade da revolução proletária e comunista, a força capaz de mudar a sociedade de baixo para cima, já que apenas os explorados são capazes de abolir a exploração.

A primeira ideologia se dá no campo da linguagem, ao considerar como sinônimos de proletariado três termos que, entre si, significam a mesma coisa “operariado – classe operária – proletariado industrial”. Se no século XIX e na primeira metade do século XX a quase totalidade do proletariado estava contida no operariado, a situação veio se alterando desde a segunda metade do séc. XX com a proletarização de amplos setores de outras classes e camadas sociais, até tornar o setor industrial do proletariado minoritário em relação ao conjunto da classe na década de 1970.

É relevante mencionar que houve um aumento da divisão interna do proletariado clássico entre “precários” e “estáveis”, o que não se limita a quem tem emprego ou está desempregado. Isto significa que o aumento da diversidade resultante do toyotismo e da terceirização levou a classe proletária a abranger setores antes classificados ambiguamente como parte do “lumpenproletariado” (ex: quem trabalha com reciclagem de lixo), assim como, por outro lado, vem abrigando em nível mundial setores antes tidos como “profissionais liberais” com a transformação das condições de trabalho das chamadas profissões “liberais clássicas” (advocacia, odontologia, medicina…) que tiveram nos últimos quarenta anos substantivas perdas, seja na posse de seus meios de produção, seja no controle de seus tempos e ritmos de trabalho em suas rotinas profissionais.

A proletarização da quase totalidade da população mundial, anverso da moeda da expansão do capitalismo a quase todas as relações produtivas do globo, fez com que, ao invés de termos formações econômico-sociais em que o capitalismo convive hegemonicamente com outros modos de produção, na atualidade o que há é um só modo de produção globalmente unificado, com variante internas.” — Manolo

Todavia, uma parcela minoritária de tais profissionais continua a ascender socialmente para as classes capitalistas. Vale lembrar que quem está desempregado também pertence ao proletariado, já que o que define em termos empíricos quem pertence a esta classe é a condição de ser possuidor apenas da mercadoria força de trabalho e estar a tentar vendê-la a um capitalista privado (burguês) ou ao Estado para ser controlada por um gestor.

Outro fenômeno consolidado depois de três décadas que atesta a ampliação exponencial da classe proletária reside no crescimento da produção imaterial – modalidade de trabalho cujo efeito imediato não é um objeto sensível e o resultado do seu processo de produção não é um produto ou mercadoria (ex: transportes) – geradora de valor tanto quanto a produção material – gera também a ilusão de que nada mais se produz e que, portanto, quem trabalha nestes setores, por estarem no setor de serviços, não seriam proletários.

A segunda ideologia se dá no campo jurídico, ao fazer com que categorias do mundo do direito que não alteram a relação social fundamental que define o proletariado empírico (vendedor de força de trabalho) possam servir para apagar a condição proletária. Exemplos: a exigência de empresas de que seus contratados tenham CNPJ, transformando assim – ideologicamente – proletários em “empresários”, apenas para escapar de encargos trabalhistas. Ou a mudança do nome “salário” por um eufemismo somente para descaracterizar uma relação de emprego (soldo, comissão, subsídio, pensão, retribuição pecuniária, retirada). Há ainda o patético termo “colaborador” ao invés de trabalhador.

Contudo, o proletariado não se constitui apenas em seu aspecto empírico. Exatamente para não cairmos na armadilha do “culto ao proletário”, temos também o seu aspecto sociológico e igualmente aqui, um outro leque de ideologias se apresenta. O proletariado apenas se torna sociológico quando adquire a compreensão da sua condição na sociedade capitalista e se organiza para superá-la – o que implica que ele compreende que existe uma oposição inconciliável entre os seus interesses e os de burgueses e gestores.

Hoje em dia e cada vez mais diminuem as diferenças entre as “lutas operárias” e as de outros movimentos sociais devido ao fato de que toda sociedade (escolas, universidades, infraestrutura urbana) está mais intimamente conectada ao processo de produção (ex: extensão da exploração aos lazeres do proletariado). Esta maior integração aumenta o grau de diferenciações fazendo com que distintos níveis de desenvolvimento sejam o fundamento material para as divisões e a desigualdade da luta de classes.

Hoje, devemos recolocar a crítica em seu devido lugar, analisando as mudanças na organização da exploração e da luta operária. Esta é a pré-condição para o desenvolvimento de novas estratégias políticas. […] a “composição técnica de classe descreve como o capital reúne a força de trabalho; ou seja, as condições no processo imediato de produção […]a “composição política de classe” descreve como os operários voltam a “composição técnica” contra o capital. Eles fazem de sua coesão, como força de trabalho coletiva, o ponto de partida para sua auto-organização e usam os meios de produção como meios de luta.” — Kolinko

Compreende-se assim o duplo e contraditório efeito causado pela divisão (hierárquica) do trabalho no processo de produção social. Por um lado fomenta divisões sexistas e racistas no interior do proletariado; por outro, unifica proletários de todas as cores de pele, gênero, nacionalidade etc., no processo de produção. O processo de luta decide quem se fortalece ou se enfraquece: se a unidade ou as divisões.

Saber identificar onde estão as partes mais dinâmicas da classe proletária – dinâmicas do ponto de vista do funcionamento do capitalismo – como se relacionam com os meios de produção e contribuir para a auto-organização dessas pessoas, possui implicações. A primeira delas possibilita sabermos quem pode e quem não pode se aliar ao proletariado na sua luta contra o capital. Uma segunda implica em orientar o trabalho revolucionário para os setores fundamentais, evitando assim desperdícios de tempo e energias (por trabalho revolucionário, leia-se: estimular que o conjunto dos explorados crie suas próprias formas de organização na/para a luta; elaborar cenários e estratégias possíveis e difundir experiências de auto-organização entre os proletários). A substituição revolucionária do capitalismo também exige uma compreensão acertada das classes e de suas relações históricas específicas.

É importante introjetar que quando o proletariado luta apenas na qualidade de assalariado, ele luta subordinado ao poder dos capitalistas. Para romper com esse poder e criar o seu próprio poder de classe necessita romper com as particularidades da exploração que sofre e que o fragmenta em diversificados níveis. Sem tal ruptura, se limita a realizar lutas que separam política de economia atribuindo primazia a uma delas (lutas sindicais ou lutas politicistas). Essa consciência de confrontar o capital como uma classe somente pode se desenvolver nos proletários a partir das lutas em que participa e da relação prática entre os produtores diretos e os meios de produção.

A comprovação do expressivo aumento do proletariado em escala mundial não significa que, na mesma proporção, o capital venha gerando uma nova parcela da classe que sirva de ponto aglutinador de diferentes regiões e ramos de indústrias. Logo, o proletariado com consciência comunista não pode prescindir do esforço para encontrar pontos comuns de referência, pois sem eles as lutas proletárias não podem se generalizar.

Objetivamente o processo de produção capitalista classifica e coloca os proletários em categorias específicas. Com base nisso, a esquerda tradicional bolchevique, por exemplo, adota padrões mecânicos de classificação e enquadramento. Logo, o proletariado com consciência comunista tem o desafio de não ser estático ao analisar as condições específicas da classe e relacioná-las com a contradição global da classe, fazendo da identificação e classificação de diferentes grupos de proletários uma ferramenta de análise para formular estratégias e praticar ações coletivas e autônomas contra a exploração.

Por fim, cabe ao proletariado revolucionário não apenas fornecer uma interpretação geral das coisas que acontecem, mas mostrar a coerência entre as condições materiais e práticas e a perspectiva das lutas. Analisar o fundamento material das lutas determina onde se deve intervir e quais pontos podem ter importância estratégica para o futuro. Para isso, necessitam de discussão e intervenção organizadas. ♟