No dia 25 deste mês de Outubro (pelo calendário juliano) ou em 7 de Novembro (pelo calendário gregoriano) completa um século daquele que é considerado o mais importante evento político do século XX, a Revolução Russa de 1917. É evidente que um evento de tal magnitude não ficaria imune a interpretações ideológicas: o que se entende quando constatamos que até os dias de hoje suas análises mais difundidas continuam restritas aos campos do bolchevismo, da social-democracia e do liberalismo, ou seja, às correntes capitalistas. A nenhuma dessas correntes interessa aplicar critérios de análise que possibilitem fortalecer a luta contra o capital e seu modelo social.
A começar pelo bolchevismo, que apresenta a Revolução Russa como se fosse o resultado de um partido genial composto por pessoas geniais que aplicou uma política perfeita e que atribui o fracasso completo a causas externas (guerras, hostilidade das democracias ocidentais), subjetivistas (culto à personalidade) ou economicistas (baixo desenvolvimento das forças produtivas). Por essa vertente, no seu centenário deveríamos celebrar as “vitórias” e “conquistas” da “grande revolução socialista de outubro”, fornecendo-nos um belo exemplo de referência histórica canonizada.
Igualmente ideológica é a explicação social-democrata. Quando ainda não havia se livrado oficialmente da teoria marxista, e coerente com seu conteúdo reformista, atacou duramente todos os pontos revolucionários do processo. Desse modo, tudo o que se chocou com seu pacifismo, parlamentarismo, legalismo, evolucionismo economicista e fatalismo socialisteiro foi abominado e rotulado como “aventureirismo” e “inconsequência” que não poderia dar certo e nem deveria ser tentado/experimentado. A criação de novas instituições pela revolução (sovietes) foi censurada por não subordinar o processo ao parlamento, por exemplo. Depois que se livrou do marxismo, suas críticas perderam singularidade e se tornaram cada vez mais idênticas às críticas dos liberais.
A terceira grande fonte de explicação ideológica da Revolução Russa, a direita liberal, ressalta apenas os aspectos que feriram de morte a hegemonia da burguesia no processo. A revelação da diplomacia secreta expondo os acordos espúrios da Rússia com as democracias, que o governo bolchevique fez em um primeiro momento, são criticadas como fator de “instabilidade institucional” e do caráter pouco confiável do bolchevismo; a liquidação da propriedade burguesa é apresentada como o “terror econômico” do novo regime; a quebra da resistência desesperada da contrarrevolução é distorcida como um “despotismo sanguinário” dos revolucionários; o uso da justiça revolucionária contra a nobreza é apresentado como “sede de vingança e revanchismo”; a opção pelos camponeses pobres contra os camponeses ricos continua a ser denunciada como “um banho de sangue responsável pela quebra do setor produtivo” (leia-se: empresários rurais ricos), entre tantas falsificações.
Para o proletariado com consciência de classe anticapitalista, explicar e extrair ensinamentos de um acontecimento tão transcendental como o que aconteceu no antigo Império Russo em 1917 e ao longo da década de 1920 implica, antes de tudo, afastar tais interpretações ideológicas. À direita e à esquerda. Hoje, importa conhecer as posições das correntes que se opuseram ao bolchevismo, pela esquerda, por dentro e por fora de todas as instituições bolchevizadas (partido, Estado, exército, sovietes, III Internacional). Ou seja, adotar uma linha interpretativa que conceba o período revolucionário como um processo complexo e problemático, seja em seu desenvolvimento, seja em seus resultados, sem medo de se autocriticar e de criticar — naquilo que couber — o que quer que seja, sempre com o objetivo de ajudar a luta pelo comunismo no presente.
“A União Soviética é o país da mentira desconcertante. Enormes forças criadoras, enormes verdades postas a serviço e implacavelmente dominadas por mentiras e injustiças ainda maiores. Proletários e camponeses russos, vítimas dos novos privilégios burocráticos, se dão conta perfeitamente do verdadeiro estado social e político do país e enfrentam a opressão burocrática com uma resistência surda, invisível de longe, mas profunda.” — Ante Ciliga
A começar pelo próprio termo “Revolução Russa”, consagrado a partir de bases explicativas nacionais. O que aconteceu naquele momento foi, na verdade, uma Revolução Europeia na qual a singularidade russa foi a de ser o único local que, graças à determinação do proletariado e do campesinato naquela região, conseguiu não ser esmagado “de fora” pelas forças abertamente contrarrevolucionárias. Diferentemente da República Soviética da Hungria, por exemplo, que durou apenas cinco meses. Além de Rússia e Hungria também se inclui a revolução na Alemanha (1918-21), envoltas em um contexto de lutas proletárias dentre as quais se destacaram ocupações de fábricas no norte da Itália (1919-20), uma onda nacional de greves na Grã-Bretanha (1919) e importantes greves na França (1919-20) e Espanha (1919-23). Este contexto de lutas proletárias foi além do continente europeu, como nos EUA (1919) e China (1917-1927), e teve força suficiente para forçar o fim da Primeira Guerra Mundial interimperialista.
Outra falsificação ideológica temos no próprio nome dado à instituição formada no processo: União “Soviética”. Os sovietes (conselhos, em russo) surgiram da luta direta do proletariado — não foram elaborados por nenhum teórico —, órgãos de poder do operariado russo em 1905 ressurgidos em 1917 para destruir o Estado e eliminar a separação institucional entre política e economia. Como a “transição socialista” bolchevique jamais colocou em questão ambos aspectos decisivos, criando aberrações do tipo “Estado Proletário” e o comando unipessoal nas empresas, os conselhos criados pela inventividade proletária foram castrados em sua autonomia logo no início do processo e colocados como órgãos consultivos paralelos ao Estado e subordinados na prática ao partido de Lênin, tornado único pela violência. Assim, sem conteúdo revolucionário, os sovietes foram glorificados para manter viva a imagem de uma luta e um poder que não mais existiam, servindo apenas de imagem romantizada para legitimar ações antiproletárias e anticomunistas do Estado e do Partido “Comunista” russos.
A defesa militar da insurreição vitoriosa na Rússia foi outro componente decisivo que recebeu a devida carga ideológica no mosaico de falsificações. Tanto pela estratégia escolhida, quanto pela forma institucional a ser criada. O Exército Vermelho foi formado a partir de uma decisão extremamente polêmica e tomada por uma maioria apertada no interior do Partido Bolchevique, na qual foi preciso derrotar duas outras propostas. A principal das propostas derrotadas defendia que fossem formadas milícias operárias com uma estratégia de guerra prolongada (abandono temporário dos centros urbanos, constituição das milícias na zona rural pelo proletariado urbano fugido das cidades, cerco e posterior ocupação final dos centros urbanos). A proposta vencedora desconsiderava a possibilidade de iniciar na guerra civil o processo de fusão entre campo e cidade, ou seja, de fazer da guerra civil um meio de construção do comunismo. Venceu a estratégia de militarizar a revolução para defender os centros urbanos a curto prazo, criando forças armadas de tipo burguês (tropas restritas, hierarquias fixas, sem eleições nem revogabilidade de postos de comando e sem decisões coletivas, incorporando inclusive oficiais tsaristas). Esse foi o conteúdo do glorificado Exército Vermelho dos bolcheviques.
“Apoiando-se no trabalho de Lênin, Stalin não deixou de modernizar tecnicamente e reforçar militarmente o Estado soviético, conferindo a ele o mais agudo caráter reacionário e imperialista.” — Ante Ciliga
Por razões de espaço, não poderão ser desmascaradas aqui ideologias como a de que houve duas revoluções (uma “burguesa” em fev. e outra “socialista” em out.) ou o mito trotskista da “velha guarda bolchevique” capaz de recolocar a revolução nos trilhos se não tivesse sido assassinada por Stálin.
Tais processos políticos, econômicos e militares permitem compreender porque, na Rússia, a burguesia desapareceu fisicamente mas o capitalismo continuou (algo inédito no planeta): sob a forma de um Capitalismo de Estado que serviu de transição e preparou as condições para o atual capitalismo privado em vigor desde 1990 com o fim da URSS. Em termos mundiais, mesmo superada na Rússia, esta via de desenvolvimento capitalista surgida em 1917 está longe de estar esgotada, vide os regimes que vigoram na China, Coreia do Norte, Cuba e Vietnam.
Dessa perspectiva, eventos por ocasião do Centenário da Revolução Russa não deveriam servir para comemorações bolcheviques, lamentações social-democratas ou demonizações liberais. Que sirvam para refletir, conhecer e aprender com a experiência de pessoas lutadoras e determinadas, derrotadas pela nova classe capitalista que, pela primeira vez, conseguiu se diferenciar com nitidez da burguesia e demonstrar que poderia sucedê-la como classe hegemônica no capitalismo: os gestores.♟