A carne é forte
Brasília - Policiais federais deixam o prédio do Ministério da Agricultura em Brasília (Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)

A carne é forte

As delações dos irmãos Batista revelaram muito mais do que as entranhas do funcionamento da relação Estado/empresas, elas mostraram a força de um setor da economia com origem no Brasil já amplamente transnacionalizado. A dona da marca Friboi é a maior exportadora de carnes do mundo e, apenas considerando dados oficiais do TSE, doou nas eleições de 2014 mais de R$ 300 milhões a candidatos de diferentes partidos (PMDB, PT, PSDB, PSD, PSB, PP). Para se ter uma ideia da grandiosidade deste valor, depois da JBS quem mais contribuiu foi a Andrade Gutierrez com R$ 10,4 milhões. Tais números incluem apenas doações legais e foram destinadas a candidatos à presidência da república, deputados federais e estaduais, senadores, vereadores e governadores, tornando na prática a JBS o maior e mais poderoso partido político. Sua bancada conta com 179 deputados estaduais em 23 estados, 167 deputados federais de 19 partidos, 16 governadores, além de alguns dos 28 senadores financiados, nem todos eleitos. O resultado desse cenário é o ditado popular: “Quem paga a banda, escolhe a música”.

Ao mesmo tempo, ao contrário do que diz certo ressentimento espalhado pelo país, a democracia brasileira vive o seu auge histórico. Ela não foi roubada ou usurpada, está perfeitamente no mesmo lugar que toda democracia moderna está: a serviço das grandes empresas e do capital. Exatamente no mesmo papel das últimas décadas. Esse auge das instituições democráticas brasileiras se dá hoje através das diversas forças-tarefas das polícias e da justiça no combate a determinadas práticas de corrupção.

Tais operações não combatem a corrupção, mas algumas práticas concretas e em andamento. Isso porque é impossível combatê-la dentro desse sistema, já que ela faz parte da sua própria natureza. A primeira corrupção diária da nossa sociedade não é o troco não devolvido ou a fila furada: é a parte da jornada de trabalho nossa que nunca recebemos e nunca receberemos – mesmo depois de qualquer operação policial ou judiciária. O que produz miséria e riqueza, carência e abundância na nossa sociedade não são os desvios de verbas públicas ou pagamento de propinas. A produção da riqueza é a mesma produção da pobreza, é a mesma relação social de produção que nos devolve salários em troca dos lucros sem fim, que produz desigualdade, injustiça, alienação. Ou seja, a corrupção primeira e geradora de todas as outras é a exploração.

Logo, é evidente que tais operações, que se confundem com espetáculos midiáticos, ao mesmo tempo que são de fato parte de momento inédito da nossa história, não estão combatendo o próprio sistema que os alimenta. Quem nos disse isso é o próprio então procurador-geral da república, Rodrigo Janot, em entrevista à GloboNews. Adorado por alguns por ter mandado prender Aécio Neves, pelos mesmos que há um ano diziam que a democracia brasileira estava ameaçada, Janot nos disse: “O Brasil é capitalista e deve sê-lo. Precisamos garantir a livre concorrência entre as empresas, por isso o combate à corrupção é necessário”. Assim, graças também à sinceridade do procurador, está claro que se trata de uma grande questão para as próprias elites dominantes do país.

Enquanto as empresas não forem geridas pelos trabalhadores e não por patrões (de direita) nem por tecnocratas (de esquerda), enquanto a sociedade não for administrada pelos trabalhadores e não por políticos profissionais (de direita ou de esquerda), o capitalismo continuará a existir e, no máximo, mudará de forma, sem alterar o fato básico da exploração.” — João Bernardo

Porém, além das palavras de Janot, há outra evidência de que essas operações estão distantes de qualquer sentimento ou prática de justiça social. Lembremos de uma delas em especial, que ganhou a atenção da mídia e da população por uma semana ou pouco mais. A operação “Carne Fraca” foi um lugar à parte nesse percurso.

A carne é o terceiro item das exportações brasileiras, chegando a 150 países do mundo e gerando cerca de 750 mil postos de trabalho. Parece ótimo, mas existe uma face oculta neste processo – uma verdadeira máquina de moer carne e ossos humanos. Quando compramos um bife, uma linguiça ou um filé de frango no supermercado, não imaginamos que por trás da embalagem existam histórias de milhares de trabalhadores/as que se lesionam gravemente todos os dias e adoecem física e mentalmente nas linhas de abate de bovinos, suínos e aves. Graves cortes com facas, além de doenças causadas por movimentos mecânicos e pela exposição constante ao frio, caracterizam o duro cotidiano dos trabalhadores dos frigoríficos brasileiros. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) usa uma escala de 1 a 4 para classificar os ambientes mais perigosos para a saúde do trabalhador. O dos frigoríficos é de grau 3, perdendo apenas para o setor de demolição e extração de minérios. Estes trabalhadores estão constantemente expostos a lâminas, serras e instrumentos cortantes de alta periculosidade; realizam movimentos repetitivos muito acima do recomendado pelos órgãos de saúde (120 por minuto, favorecendo o desenvolvimento de doenças osteomusculares – enquanto o máximo deveria ser de 25 a 33); pressão psicológica para dar conta do ritmo alucinado de produção (são monitorados em suas idas ao banheiro e proibidos de conversar, vivendo uma situação de assédio permanente, que favorece o desenvolvimento de doenças de fundo emocional como a depressão e os impulsos suicidas); cumprem jornadas exaustivas sem os intervalos determinados em lei, além de serem submetidos a um ambiente asfixiante e gelado, que por si só exige maior energia para a realização de qualquer movimento, além de impactar o aparelho respiratório, facilitando doenças como sinusite e pneumonia.

Dentro do sistema capitalista, todos os métodos para elevar a produtividade do trabalho coletivo são aplicados às custas do trabalhador individual; todos os meios para desenvolver a produção redundam em meios de dominar e explorar o produtor, mutilam o trabalhador, reduzindo-o a um fragmento de ser humano.” — Karl Marx

Segundo dados oficiais do Ministério da Previdência Social, os chamados transtornos de humor dentre os trabalhadores de frigoríficos são 3,41 vezes maiores que nos demais setores, as doenças do tipo LER/DORT, 6,74 vezes maiores, traumas/mutilações, 2,25 vezes maiores e queimaduras, 6 vezes maiores. Estudos realizados demonstraram que medidas simples como adequações ergonômicas e o cumprimento dos intervalos de 20 a cada 100 minutos trabalhados contribuiriam para reverter este quadro perverso. No entanto, existe a resistência do empresariado que quer aumentar seus lucros a qualquer custo.

Descoberta pelas gravações da operação “Carne Fraca”, uma das propinas pagas, a menos comentada pela imprensa, era o pagamento para a aprovação do aceleramento em 20% da velocidade da linha de produção de corte. Com a recente aprovação da flexibilização da legislação trabalhista, que permite ao patronato a intensificação da extração de mais-valia, esta situação tende a se agravar ainda mais.

Diante da realidade de um proletariado industrial tão importante para o capital e tão intensamente explorado, a pergunta que não quer calar é: por que a esquerda tradicional continua privilegiando outra classe social (campesinato), fazendo a defesa de propostas políticas antiproletárias (reforma agrária, agricultura familiar/cooperativismo, vegetarianismos, etc.) e canalizando esforços para construir e fortalecer organizações anticomunistas como o MST e a Via Campesina?