Identidades e Proletariado: lutar com as minorias ou com a maioria?

Identidades e Proletariado: lutar com as minorias ou com a maioria?

Devido às inúmeras derrotas do proletariado durante o século XX, a sua luta de classe se apresenta nesse período histórico de forma fragmentada, em pequenos grupos, definidos por meio de pautas específicas, referentes a questões socioambientais, culturais, raciais e de orientação sexual. Ao priorizar aspectos e setores, quem luta tem perdido cada vez mais a perspectiva de classe. Observar a dinâmica da sociedade por meio de uma perspectiva classista geral, permite ter uma visão mais ampla de qual é o verdadeiro inimigo a ser confrontado pela classe, assim como quais são as melhores estratégias para superar esse desafio.

O que se deve ressaltar e resgatar é uma perspectiva de classe proletária, sem ignorar que dentro da classe existem diferenças e particularidades mas que tais diferenças e particularidades se situam como elementos determinados de algo determinante: relações de exploração entre seres humanos. Ou seja, o proletariado é composto por pessoas de várias etnias, orientações sexuais e diferenças de lugar de moradia, estudo e trabalho. E isso não deve nos diferenciar, temos um princípio que nos une enquanto classe, que é apropriação do nosso trabalho pelo capitalismo. Somos a única classe que tem a potencialidade para conduzir a transformação revolucionária da sociedade até o fim.

O surgimento dessa estratégia de luta fragmentária tem origem na Europa e EUA a partir da derrota das manifestações estudantis e proletárias no movimento que ficou conhecido por “maio de 68”. Esta concepção fragmentada ganhou força a partir do refluxo desse movimento, da divisão da chamada esquerda com a separação definitiva dos revolucionários proletários tanto da URSS e seu sistema de partidos comunistas pelo mundo, quanto das organizações maoístas e do falso progressismo da social-democracia.

É nesse mesmo contexto histórico que surgem dois fenômenos que reforçam uma visão fragmentária da totalidade: o mal chamado “neoliberalismo” e um conjunto de pensamentos e autores, conhecidos como pós-modernos ou pós-estruturalistas, que tem como objetivo criticar as ferramentas conceituas gerais no sentido de colocá-las em xeque, assim como qualquer tipo de unidade política ou cultural. Esses dois fenômenos alcançaram grande difusão e acolhimento nos países de capitalismo desenvolvido principalmente na comunidade acadêmica. Não cabe aqui discutir toda essa gama de autores e suas matizes de pensamentos. Pretendemos apenas demonstrar os limites que tal visão fragmentária do real pode trazer.

Uma verdadeira politica deve ignorar as identidades, mesmo aquela tão tenue, tão variável, a dos “comunistas”. Conhece apenas aqueles fragmentos do real dos quais uma Ideia atesta que o trabalho de sua verdade está em curso” — Alain Badiou

Uma questão que se deve chamar a atenção é como a democracia liberal cada vez mais tem aceito as reivindicações dos movimentos identitários, implementando suas políticas, como a Lei Maria da Penha no Brasil, o casamento homoafetivo nos EUA ou a legalização das drogas em vários países. Devemos ter em mente que a democracia liberal assim procede como forma de absorção de conflitos e amortecimento da luta de classes. Qualquer demanda social que o capitalismo incorpora, sem luta da classe proletária, apenas é incorporada porque não ameaça a reprodução do sistema e nem diminui a lucratividade. Em alguns casos até podem gerar lucros, quando os grupos identitários viram nichos de mercado.

Um exemplo esclarecedor da forma como o capitalismo tem se aproveitado desse tipo de pauta para os seus interesses é a anunciada proposta de instalação da primeira delegacia da mulher em um campus universitário no Brasil, na Universidade Federal de Santa Catarina. A polícia é uma instituição criada para cuidar da repressão às classes exploradas. Muito além de evitar e prevenir violências contra mulheres no espaço acadêmico – uma demanda justa – a questão da mulher funciona aqui mais como justificativa social para conquistar apoio para implantar oficialmente uma instituição que irá atuar na repressão e monitoramento de todo tipo de atividade que acontece nas dependências da universidade, montando um aparato repressivo sem qualquer controle social que estará capacitado para atuar em questões muito diferentes do que as de delitos cometidos contra as mulheres.

Por seu caráter liberal, boa parte das pautas identitárias se limita a reivindicar a igualdade no plano jurídico, seja de direitos ou salários entre homens e mulheres, entre humanos brancos e de outras etnias, entre humanos e não humanos. O limite liberal se revela quando ativistas se organizam e se colocam em movimento para “conquistar” serem explorados igualmente pelo capitalismo. Não se luta mais contra o capitalismo, mas para que o capitalismo explore sem distinções.

A emancipação política da religião não é a emancipação integral, sem contradições, da religião, porque a emancipação política não consttitui a forma plena, livre de contradições da emancipação humana.” — Karl Marx

Frequentemente o capitalismo transforma lutas sociais do campesinato e de resistência ao deslocamento de populações nativas ou originárias em questão ambiental. Camponeses lutam pela preservação de suas terras e do meio ambiente que as cerca por ser assim que podem fazer a reprodução econômica de sua existência. Populações nativas ou originárias são transferidas para outras áreas devido à especulação agrária, imobiliária ou para a construção de obras que beneficiam o capital. Logo, trata-se de um problema estrutural causado por um sistema econômico e político que exige como resposta a auto-organização dos atingidos enquanto classe. Por isso se torna interessante para burgueses e gestores do capitalismo “desviar” as lutas de uma perspectiva de classe, que permite a todos lutarem de forma unida, para uma questão de preservação ambiental e não de transformação social, fragmentando assim estas lutas.

Assim, importa compreender que nem tudo é o que parece ser. Consideradas de um ponto de vista imediato, as lutas fragmentadas podem parecer muito importantes e a principal forma de combate à crescente exploração e depreciação da vida dos explorados. Porém, estas lutas não atacam a raiz do problema, pois mesmo quando lutas fragmentadas são vitoriosas, as conquistas resultantes dessa concepção fragmentada continuarão coexistindo com o capitalismo e até mesmo o aperfeiçoando (veja o caso do capitalismo verde e autossustentado). Como as formas de precarização da vida humana no capitalismo são flexíveis e múltiplas, lutar contra elas também exige da classe proletária consciente flexibilidade e multiplicidade de formas. O que não se confunde com identitarismos, comunitarismos nem fragmentações.