De acordo com um levantamento feito em 2022 pelo IBGE, a cidade de São Paulo tem 588 mil casas e apartamentos vagos — o dobro do registrado em 2010. No Brasil, 13 em cada 100 domicílios particulares estão vazios, totalizando 11,4 milhões de casas e apartamentos desocupados, enquanto em 2010 eram 9 milhões. O censo revela que o número de casas vazias é o dobro do déficit habitacional no Brasil.
A despeito destes dados, as câmaras municipais seguem aprovando planos diretores para a construção de mais prédios, mais altos. No centro desta contradição, encontra-se a Favela do Moinho — a última favela do centro de São Paulo, que recentemente encerrou um ciclo de luta envolvendo os governos municipal, estadual e federal, nos relembrando que além da luta nos locais de trabalho e estudo, fazer o enfrentamento nos locais de moradia é essencial para o proletariado que deseja um dia emancipar-se.
De Moinho a Favela
A Favela do Moinho ganha este nome pois se desenvolve em um antigo complexo industrial desativado na década de 1980, anteriormente utilizado para o processamento de farinha e fabricação de ração animal. No coração de São Paulo, entre os bairros Bom Retiro e Higienópolis, o terreno passou a ser gradualmente ocupado por famílias de baixa renda já no final dos anos 80, atraídas pela localização estratégica no centro expandido da cidade, que oferece maior acesso a empregos, serviços públicos e infraestrutura urbana. Hoje a comunidade possui mais de 800 famílias residentes.
Devido à localização privilegiada, o terreno é altamente cobiçado pela especulação imobiliária. Apesar das décadas de reivindicações por parte dos moradores pela implementação de serviços essenciais como saneamento, fornecimento de água, pavimentação e coleta de lixo, estas demandas foram sempre negligenciadas pela prefeitura, colocando a comunidade em uma situação de alto risco de tragédias, como os incêndios de 2011 e 2012, que deixaram centenas de desabrigados e resultaram em mortes. A cada tragédia, um novo plano de higienismo era traçado pela prefeitura e pelo governo do Estado, como o projeto de migração a um conjunto habitacional ao lado da Ponte dos Remédios oferecido à 350 famílias, a criação de um corredor cultural ferroviário no local, com a implementação de um projeto turístico denominado “Trem do Moinho”, ou a tradicional via jurídica pela ordem de despejo promovida pela prefeitura de Kassab (PSD) em 2011. Desta vez, com o terreno de propriedade do governo federal cedido ao governo do Estado, a administração Tarcísio (Republicanos) decidiu levar a cabo os desejos da especulação imobiliária. O pretexto é criar um parque sobre o terreno — parte de um projeto bilionário que busca transferir de volta para o centro de São Paulo e unificar toda a gestão pública da máquina estatal, com a construção de uma enorme nova sede.
Capital e Estado pela desapropriação
Para remover os moradores, o plano do governo Tarcísio elabora duas estratégias complementares. A primeira é seduzir os moradores oferecendo moradias financiadas na periferia da cidade em um complexo residencial construído pelo governo, pago com um auxílio habitacional. Funcionários da CDHU – Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo, empresa pública estadual vinculada à Secretaria da Habitação visitaram a favela oferecendo contratos de financiamento de novas habitações, mas ao mesmo tempo coagindo os moradores a mentir a renda, pois muitos não recebem sequer um salário mínimo. Coagidos a declarar uma renda maior, entretanto, os moradores estariam alegando que têm condições para arcar com o imóvel, não recebendo o auxílio habitacional, o que poderia gerar uma situação generalizada de inadimplência. Bom para o governo, bom para os bancos mas e para os moradores? A alternativa seria abandonar o projeto e ficar à própria sorte, ou, se aceitassem e fossem apanhados na mentira, teriam os contratos cancelados por fraude como descrito no próprio contrato empurrado aos moradores. Mesmo se eventualmente a renda do(a) morador(a) fosse suficiente para o projeto, as moradias oferecidas eram de em média 25m², e no momento apenas 20% dos apartamentos estavam prontos para morar.
“Você conhece o pedreiro Waldemar? / Não conhece? / Mas eu vou lhe apresentar / De madrugada toma o trem da Circular / Faz tanta casa e não tem casa pra morar / Leva marmita embrulhada no jornal / Se tem almoço, nem sempre tem jantar / O Waldemar que é mestre no ofício / Constrói um edifício / E depois não pode entrar.” — Wilson Batista – 1949
O moinho resiste
A segunda estratégia foi, mobilizar a polícia militar para dentro da favela que além de oprimir os moradores com truculência, supervisionaram a demolição forçada de residências. Em resposta, os moradores organizaram uma manifestação bloqueando a linha de trem da CPTM que circunda ambos lados da favela, exigindo a retirada da polícia e uma melhor negociação. A polícia militar reprimiu os protestos violentamente, utilizando bombas de gás lacrimogêneo e pimenta, balas de borracha e agressões físicas a moradores, jornalistas e crianças, além de instaurar um verdadeiro cerco com barricadas nas entradas principais da comunidade.
Corajosamente, os moradores da comunidade se organizaram de forma autônoma e impuseram sem vacilar um enfrentamento direto contra as investidas da polícia militar e dos funcionários demolidores da CDHU, criando órgãos de autoproteção comunitária como um comitê de denúncias de brutalidade policial, um mapa colaborativo de violações com geolocalização, um complexo sistema de rádio com estruturas de antenas instaladas no alto de casas para monitorar a PM permitindo avisar antecipadamente sobre movimentos policiais, uma imprensa solidária criando canais próprios de informação e articulação (via redes digitais, grupos de WhatsApp e repórteres independentes), e grupos de vigílias e ocupação contra despejos, em pontos estratégicos da favela, impedindo a entrada de oficiais e funcionários da prefeitura.
Com repercussão nacional, a luta dos moradores atraiu a atenção de diversas organizações políticas, partidos e movimentos sociais, entretanto, os moradores organizados em nenhum momento entregaram a direção da luta para terceiros, o que talvez tenha sido a decisão mais crítica que garantiu a vitória do movimento.
“Desde o início, o trabalho de organização nos bairros deve combater o reformismo político em todas as suas manifestações (…) e deve combater igualmente qualquer processo de decisão que seja tomado de cima para baixo, ou seja, todas as decisões devem partir do conjunto das pessoas que participa diretamente das discussões no bairro.” — Henk van der Graf
A vitória de uma luta autônoma
O enfrentamento dos moradores resultou primeiro em um recuo do governo federal em ceder o terreno, e após isto em um novo acordo fechado entre o governo do Estado e Federal. O novo acordo firmado oferece R$ 250 mil por família, somando recursos do Minha Casa, Minha Vida (R$ 180 mil) e do programa Casa Paulista (R$ 70 mil), para compra assistida de imóveis em qualquer município do estado. Enquanto aguardam a mudança, os moradores receberão um auxílio-moradia de R$ 1.200 mensais. A continuidade do acordo está condicionada à ausência de violência policial, após os meses de repressão.
A crise de moradia no Brasil é artificial, e serve para atender os desejos da burguesia através da especulação imobiliária. Sob o capitalismo, a terra urbana não é tratada como bem social, mas como mercadoria. A cidade deixa de ser espaço de convivência e passa a ser uma fonte de lucro. O proletariado é empurrado para as periferias, onde os serviços são piores e os custos de deslocamento são maiores. A burguesia se apropria da infraestrutura pública (como transportes e parques) para valorizar suas propriedades privadas e o Estado age como cúmplice, usando a polícia, o judiciário e a legislação para proteger a propriedade e não a vida.
A luta dos moradores da Favela do Moinho revela de forma cristalina que a direita e a esquerda do Capital não hesitarão em unir-se para satisfazer estes desejos e lançar o proletariado à sua própria sorte. Esta luta ainda revela que, também nos locais de moradia, a única forma a combater os avanços do Capital é o movimento dos trabalhadores residentes auto-organizados em seus próprios órgãos, assembleias, comissões populares, e associações de moradores, e entra para o rol histórico das lutas bem sucedidas por moradia no Brasil, como a Comunidade Dandara em Belo Horizonte (2008), a Vila Autódromo no Rio de Janeiro (2012), e a Vila Operária Popular na fábrica ocupada Flaskô (2007).♟