Indonésia, Nepal e Filipinas: conflito geracional ou luta de classes?

Indonésia, Nepal e Filipinas: conflito geracional ou luta de classes?

Nos últimos meses, inflamadas revoltas sociais explodiram em efeito-dominó na parte asiática da periferia do capitalismo mundial. Revoltas recentes em países como Indonésia, Nepal e Filipinas apresentam semelhanças marcantes como pautas contra a corrupção, mobilizações de massa e ataques a prédios do Estado, mas um elemento se destaca com nitidez: o papel central da chamada “Geração Z” nesses movimentos.

Particularidades dos protestos

No Nepal, o que começou como uma revolta contra a proibição das redes digitais rapidamente se transformou no maior movimento de protesto em anos. Milhares de jovens, a maioria estudantes e recém-formados desempregados,  marcham contra a corrupção e a censura do governo. Após semanas de protestos que deixaram quase vinte mortos, o primeiro-ministro K.P. Sharma Oli renunciou e a proibição foi suspensa, marcando uma vitória para o que muitos agora chamam de “revolta da Geração Z”.

Na Indonésia, uma dinâmica semelhante emergiu. A agitação se espalhou por várias regiões, desencadeada por altos aumentos de impostos locais e profunda frustração com a vigilância e censura online do governo. Grupos de estudantes entraram em confronto com a polícia nas universidades e nas ruas da cidade, exigindo responsabilização e alívio econômico. Embora algumas políticas tenham sido revertidas, o governo reforçou os controles digitais, expondo um crescente abismo entre o Estado e uma população jovem e inquieta.

Enquanto isso, nas Filipinas, grandes manifestações eclodiram devido a alegações de corrupção em projetos de controle de enchentes. Estudantes, grupos religiosos e parte da população se uniram em protesto contra o que chamam de cultura de impunidade entre dinastias políticas. Mais de 200 pessoas foram presas, mas as marchas continuam, ligando os escândalos atuais a décadas de desigualdade e nepotismo.

Chama atenção a presença de cinco elementos que levantam fortes indícios de que tais revoltas possam integrar uma operação de mudança de governo nos moldes das chamadas “revoluções coloridas” patrocinadas pelos EUA, são eles:

1) o curto intervalo entre a eclosão dessas diferentes lutas;
2) o caráter hegemônico do discurso em favor de uma “restauração democrática” como solução política;
3) a presença recorrente de cartazes em inglês;
4) o enfoque da mídia internacional na questão geracional (enquadramento típico do contexto estadunidense);
5) a localização estratégica desses países em áreas de disputa com o imperialismo chinês.

Apesar de cada levante possuir dinâmicas próprias, o protagonismo dos jovens nessas mobilizações impõe a necessidade de compreender o papel histórico e os limites da juventude enquanto sujeito político. Para além das interpretações geopolíticas ou midiáticas, é preciso examinar em que medida essas revoltas expressam um impulso autêntico de classe ou se refletem apenas na superfície ideológica de um descontentamento geracional.

Movimentos estudantis

Revoltas estudantis são muitas vezes explosivas. Por sua ousadia e menor enraizamento em instituições formais, conseguem iniciar ondas de protestos imensos colocando em movimento contradições latentes da sociedade. Além disso, a juventude estudante é um vetor de novas linguagens, formas organizativas horizontais e formas de ação direta. Entretanto é preciso perceber que movimentos estudantis possuem limites e armadilhas. Estudantes não produzem valor diretamente: diferentemente do proletariado, os estudantes não são centrais na exploração econômica, ainda são proletários em formação e não podem, sozinhos, paralisar a reprodução do capital.

Dentro da juventude há divisões de classe (burguesa, gestorial, proletária), que geram distintos interesses. Diferentes frações da classe buscam diferentes objetivos: autonomia, tutela do estado, ascensão social através de partidos e sindicatos, etc, impedindo a possibilidade de uma coesão coletiva duradoura. Some-se a isto que entidades estudantis burocráticas, partidos e ONGs canalizam a energia contestatória para negociações ou carreiras políticas (o caso da UNE/UBES no Brasil é emblemático).

A democracia só aceita os insurgentes na medida em que se preparem para se converterem em eleitores.” Gilles Dauvé e Karl Nesic

 A dita “geração Z”

As classes sociais baseiam-se nas relações de produção: quem possui meios de produção, quem vende força de trabalho, quem se apropria da mais-valia. Gerações são cortes cronológicos essencialmente arbitrários, baseados no ano de nascimento e experiências históricas compartilhadas. Elas atravessam as linhas de classe: um entregador de aplicativo da Geração Z no Brasil pode pertencer à mesma “geração” que um empreendedor de tecnologia na Alemanha mas não compartilha a mesma posição de classe. Portanto, a rigor, não se deve usar a Geração Z  como categoria analítica eficaz para examinar a sociedade buscando compreendê-la.

Rótulos geracionais são construções ideológicas. Categorias criadas dentro do capitalismo para explicar tensões sociais que, na verdade, surgem de contradições de classe. Em vez de dizer “os jovens estão desempregados devido à superprodução capitalista, à automação e à precarização”, o coquetel ideológico servido pelas classes dominantes diz que “a Geração Z é preguiçosa/descomprometida”. Isso desvia o foco das relações de classe para narrativas identitárias e morais, ocultando a realidade material. Assim, a Geração Z como identidade é uma forma de falsa consciência que ofusca a base de classe dos problemas da juventude.

Por outro lado, é preciso atentar que diferentes grupos etários vivenciam o capitalismo de formas diferentes, dependendo do estágio de acumulação em que cresceram (liberalismo pós 1980, crise, fim da guerra fria, etc.). Experiências compartilhadas podem dar a um grupo geracional materialidade para a unidade. Por exemplo, a dita Geração Z enfrenta alto desemprego, trabalho precário e vigilância digital com mais intensidade que gerações anteriores. Isso tem por consequência o emprego de táticas de luta específicas, fornecendo uma coesão política, mesmo que policlassista, em função desses jovens compartilharem uma situação histórica coletiva.

A lógica do capital, no entanto, é tentar e fazer algo pelos desempregados, particularmente pelos jovens desempregados antes que eles se tornem uma força revolucionária, ou antes que eles se tornem uma fração do proletariado abertamente trágica, vandalística e suicida.” Dave e Stuart Wise

Aliança necessária

Considerando que cada classe social tende a agir por seus interesses, e que esses interesses são inconciliáveis, é importante estar atento contra construções ideológicas elaboradas para dividir proletários em movimento, assim como a movimentos organizados de forma policlassista, pois não se pode lutar ao lado dos que desejam o oposto do que se luta. A organização proletária deve saber identificar as posições de classe sem ideologias.

O desafio do proletariado com consciência comunista está em traduzir a frustração geracional em luta de classes, ou seja, conectar as justas queixas da parcela proletária da Geração Z (precariedade, moradia, jornada) com a luta mais ampla da classe, em vez de deixá-los permanecer presos em pautas de “identidade juvenil”, de curta validade.

A juventude em Nepal, Indonésia e Filipinas mostra alto potencial disruptivo, mas, sozinha, não é capaz de construir um caminho revolucionário. Seu papel histórico é abrir a brecha, radicalizar discursos e práticas, e buscar a aliança consciente com o proletariado a partir de pautas que reflitam uma realidade material comum. Só assim estes momentos explosivos podem se transformar em movimento duradouro pela autogestão social e abolição das formas capitalistas.♟