Enchentes gaúchas: mais uma tragédia anunciada do Capital
Imagem da enchente na região de Porto Alegre capturada pela NASA.

Enchentes gaúchas: mais uma tragédia anunciada do Capital

Rompimento da barragem em Mariana, rompimento de barragem em Brumadinho, afundamento do solo na mina da Braskem em Maceió e, agora, a calamidade ambiental que levou às enchentes no Rio Grande do Sul. Em menos de uma década o nosso país acumula uma série de desastres cada vez piores. Dois boletins já trataram desse tema da ecologia: o BB# 46, que abordou o interesse do Capital nas queimadas florestais da época do governo Bolsonaro, ao apresentar sua face mais predatória – interessada na produção energética defasada – e a relação íntima com o capitalismo verde; e o BB# 79, que trouxe a problemática entre crise ambiental e a questão de classe, chegando à raiz desse fenômeno. Neste boletim abordaremos as respostas falhas do Capital ao desastre gaúcho e como o proletariado autônomo poderia responder.

Capital consciente e uma resposta ausente

Durante o desenrolar da tragédia gaúcha é de senso comum a percepção de evitabilidade e mitigação. O que poucos sabem é do projeto engavetado pelo governo Dilma em 2015, que investiu 3,5 milhões de reais num time de climatologistas que previu que as mudanças climáticas levariam a desastres associados à piora das secas no Nordeste, falta de água no Sudeste e inundações no Sul. Portanto, não faltou conhecimento da necessidade de planos de contingência e sistemas de alerta.

Como se não bastasse, no final do ano passado a Região Metropolitana e a Serra já haviam passado por terríveis eventos climáticos que pararam a capital do estado e, em março, alertas meteorológicos apontavam o risco de um evento ainda pior no início de maio, que de fato ocorreu. Mas por que o Capital não foi capaz de responder a esses eventos previsíveis, uma vez que não apenas a vida do proletariado, como também a produção do Capital está sendo enormemente afetada?

“As forças produtivas engendradas pelo modo de produção capitalista moderno, assim como o sistema de repartição os bens que criou, entraram em contradição flagrante com o modo de produção em si, e isso a tal grau que se torna necessária uma mudança do modo de produção e de repartição, se não quisermos ver toda a sociedade moderna perecer.” — Friedrich Engels, Anti-Dühring

Capitalismo e barbárie

A necessidade da revolução proletária para evitar a barbárie, postulada economicamente por Engels e transformada em lema por Rosa Luxemburgo, tem sido posta em prova ano após ano. As respostas pífias do Capital têm permitido que os eventos se agravem. E elas são pífias justamente porque para resolver o dilema ambiental é necessário modificar a forma como exploramos a natureza, que se dá, essencialmente, através do trabalho. Trabalho este que é centrado na exploração do homem, âmago do Capital, sem a qual é impossível este existir.

O capitalismo verde tenta contornar este fato ao propor reformas para torná-lo ecologicamente correto. Uma tendência que sempre encontrou resistência nos setores estruturais do capitalismo brasileiro, como a agroindústria gaúcha, já abordada no BB# 79. Até mesmo propostas paliativas sofrem essa resistência, como podemos observar no caso dos muros e diques de contenção construídos em 1968 em Porto Alegre. Essas estruturas foram consideradas inúteis e ultrapassadas pelos setores econômicos gaúchos que apostavam no embelezamento da orla do Guaíba, com a construção de shopping centers e outros investimentos do forte setor imobiliário de Melnick, Zaffari e Sirotsky. É anedótica a postagem de um deputado estadual gaúcho, Felipe Camozzato, que apareceu nas redes sociais chutando uma parte do muro em julho de 2022 e agora, após a catástrofe, apresenta-se compadecido com as vítimas. Não é um caso isolado. O atual prefeito, Sebastião Melo, e vereadores estavam prospectando estudos para justificar a derrubada do muro da Mauá, enquanto que o ex-prefeito, Marchezan, defendeu publicamente a sua derrubada.

Como se não bastasse a falta de investimento em proteção ativa, os sistemas de controle de inundações implantados nos anos 60, após a grande enchente de 1941 (superada pela atual), que dependem da energização de bombas pelo serviço precário da CEEE – privatizada e com grande parte de trabalhadores terceirizada -; bombas essas que não receberam nenhuma modernização, extremamente precárias, provavelmente aguardando a privatização do DMAE a preço de banana, terminam de explicar o trágico cenário. Isso falando da capital, pois nas regiões Metropolitana, Serra, Campanha e Sul, as contenções são ainda mais precárias, mesmo após os eventos catastróficos do ano passado. Todavia, isso tanto a esquerda como a direita do capital reconhecem. Mais importante é perceber a espontaneidade com que o proletariado responde.

A resposta à crise em Porto Alegre e região metropolitana

Na sociedade gaúcha inundada vivencia-se o caos instalado dentro e fora das inundações. Até o momento, 10/05, temos mais de 90 abrigos criados na região metropolitana e Pelotas sofrendo com o rescaldo das cheias na Lagoa dos Patos. O Estado, representado na capital pela FASC (Fundação de Assistência Social e Cidadania) consegue estar presente em poucos deles, cerca de 15, onde tenta garantir aos abrigados alimentação e proteção contra ações violentas que têm acontecido entre os próprios abrigados. O maior deles, na ULBRA, abriga mais de 7 mil pessoas. Os gestores municipais utilizam escolas, universidades, tendas do exército armadas em praças e alguns shopping centers, que cedem seu espaço. Enquanto isso, a grande maioria, criada pela iniciativa privada, utiliza depósitos de supermercados, academias, igrejas, entre outros, sem o intermédio do poder público e com registros de violência. Devido a essa violência, que acontece de todas as formas, foram criados alguns exclusivos para mulheres e crianças, outros para crianças autistas, surdos, entre outras necessidades especiais.

Porém, esses abrigos não resolvem completamente a situação dos atingidos pelas inundações. Fora dos abrigos as comunidades têm organizado movimentos para saquear as doações recebidas, algumas vezes de forma violenta, o que acabou levando ao fechamento de abrigos, que são transferidos para outros locais. Isso acontece pela escassez de bens necessários à subsistência que atinge todo o RS. Situação que levou a uma corrida desenfreada, logo nos primeiros dois dias da tragédia, por estocagem de mantimentos. Supermercados e postos de combustível, despreparados para essa demanda fora do comum, acabaram com seus estoques rapidamente. Mas em alguns locais, por iniciativa de pequenos comerciantes, há um racionamento de mantimentos que evita a estocagem e permite o acesso a mais pessoas.

Em poucas localidades, espontaneamente, as pessoas formaram comitês de ajuda mútua, seja para avisar a subida rápida da água àqueles que resistem em sair de suas casas, seja para transporte de fluvial para os abrigos, seja para levar água e alimentos enquanto aguarda o transporte chegar, pois não tem barco pra tanta gente. Nas casas abandonadas, onde tem ocorrido muitos assaltos a barco, as comunidades têm desenvolvido formas de se defender daqueles que se aproveitam da desgraça alheia, pegando em armas e por vezes até matando por afogamento.

De um modo geral a sensação de despreparo e desorganização é muito grande. O pouco que se tem de organizado acaba vindo do Estado. A falta de uma articulação entre os diferentes abrigos, não só no estado, como dentro de uma mesma cidade, é evidenciado pelo acúmulo de doações que sobram em alguns abrigos e faltam em outros. Sindicatos e conselhos profissionais se limitam a ações conjuntas com o Estado, que também tem dificuldade para organizar as ações. Não se ouve falar de organizações por local de trabalho ou moradia com um grau de autonomia que vá além da espontaneidade, apesar de ser comum o acolhimento de até 10 parentes e amigos numa mesma casa. Se por um lado o trauma psicológico de vivenciar uma catástrofe justifique a dificuldade para responder a ela pelas vítimas, por outro, observar o despreparo, desorganização e falta de um norte, com consequente subutilização de recursos escassos e vitais, entre os voluntários e trabalhadores a serviço do Estado (profissionais da saúde e da segurança pública), é desalentador.

“Eu quero derrubar o Muro da Mauá. Eu já disse que gostaria de ser o piloto do trator que derrube esse muro. Temos muitos muros que deveriam ser derrubados, mas não são por medo. ” — Nelson Marchezan Júnior, ex-prefeito de Porto Alegre em declaração pública de 2019

E qual seria a resposta da classe?

O proletariado organizado por local de moradia e de trabalho poderia ocupar fábricas, galpões de igrejas e escolas, existentes em todas as comunidades, por iniciativa própria, sem depender do Estado e, a partir da autonomia da classe sistematizar o acolhimento e distribuição de água e alimentos, adquiridos dos armazéns abandonados, tanto para desabrigados como para o proletariado sem acesso à subsistência. Toda a classe estaria protegida, caso existissem organizações autônomas que articulassem essas demandas, com controle de fato da situação. O proletariado já mostrou ser capaz disso em outras catástrofes até piores, como as Guerras Mundiais e num exemplo que sempre citamos, a Comuna de Paris. Porém, a situação atual escancara que o refluxo do movimento operário é tamanho que sequer os sindicatos, entidades, em tese, organizadas, foram capazes de tomar a frente do apoio às vítimas: limitaram-se a negociar jornadas de trabalho 12/36h com a patronal e apenas 75% de abono entre aqueles que não conseguem chegar no trabalho (SINDISAÚDE).

De forma alguma culpabilizar, mas é preciso de certa maneira despertar o proletariado para a situação de total dependência em relação ao Estado, fruto de ações da socialdemocracia em priorizar a luta pela ampliação do Estado de direito em detrimento dos movimentos autônomos para fortalecimento da classe. Essa derrocada no protagonismo de nossa classe, observada nos últimos 40 anos, precisa ser urgentemente reconhecida para que a classe, e o resto da humanidade junto com ela, não morra afogada na incapacidade e na indiferença de gestores e burgueses.♟