No último mês de março o governo Lula apresentou ao Congresso Nacional o projeto de lei complementar 12/24 que pretende regulamentar o trabalho dos motoristas de aplicativos, especificamente os de transporte de passageiros em veículos de quatro rodas, excluindo os entregadores. Em meio a protestos tanto da categoria como das empresas proprietárias das plataformas digitais, o projeto demonstra como a socialdemocracia pretende lidar com o trabalho precarizado no século XXI: legalizando-o.
O que propõe o governo
Pelo projeto apresentado, os motoristas são considerados trabalhadores autônomos e teriam direito a uma remuneração mínima, calculada com base no salário mínimo, no valor de R$ 32,10 por hora trabalhada. Ocorre que essa hora só diz respeito ao período das corridas, excluindo todo o tempo que o trabalhador fica conectado, à disposição do aplicativo, aguardando ser chamado. Estabelece ainda uma jornada de 8h a 12h diárias por aplicativo, sem acordo de exclusividade em relação a uma plataforma específica.
Em relação à previdência, esses trabalhadores seriam cadastrados como contribuintes individuais, devendo recolher ao INSS 7,5% sobre sua remuneração, enquanto a empresa do aplicativo recolheria 20%. O salário considerado para fins de contribuição previdenciária seria de R$ 8,03/hora, já que o projeto considera que os outros R$ 24,07 seriam destinados a custos do trabalhador como celular com internet, combustível, manutenção do veículo, seguro, etc. Concede-se ainda, às trabalhadoras, direito ao auxílio-maternidade.
Após tantas ações judiciais tramitando nas altas cúpulas do Judiciário, pleiteando a existência de relação de emprego, o governo PT se antecipou e já sepultou a questão, definindo que não passam de trabalhadores autônomos, e que as empresas de aplicativos são meras “intermediadoras” entre o motorista e o passageiro. No Congresso, Arthur Lira decretou regime de urgência na tramitação.
Quando da Reforma Trabalhista de 2017, no governo Temer, a militância petista ainda ressentida pelo impeachment, bradava em coro “nenhum direito a menos”. Agora no poder, o partido não só se conformou com a reforma, como tenta aprofundar o fosso da precarização. Não é surpresa, afinal foram eleitos como a opção “menos pior”.
Fosse um partido minimamente comprometido com o proletariado, mesmo nos marcos burgueses da legalidade, trataria de rever os elementos da relação de trabalho estabelecidos há mais de 80 anos, adaptando-os para conceder mais direitos aos trabalhadores expostos à atual realidade das relações de exploração: patrões invisíveis, escondidos atrás de sistemas operacionais informatizados; jornada fluida, sem diferenciação entre hora de trabalho e hora de descanso; e proletários custeando toda a estrutura física necessária para serem explorados (carro, moto, bicicleta, aparelhos eletrônicos, acesso à internet, combustível, vestimenta, alimentação, manutenção técnica).
Ao invés disso, propõe a criação de uma subcategoria de trabalhador, que possui jornada de trabalho e salário mínimo fixados em lei, mas não tem direito à carteira assinada, nem pode sonhar com férias, décimo-terceiro salário, descanso semanal remunerado, licença-maternidade/paternidade, seguro-desemprego, horas extras, etc. Tais direitos básicos de qualquer empregado formal terão de ser conquistados ano a ano por meio de negociações sindicais. Em resumo, ao mesmo tempo em que amplia a arrecadação da Previdência Social, o PT ainda tenta azeitar a enferrujada estrutura sindical brasileira.
A reação negativa veio de todos os lados. A Federação Brasileira de Motoristas de Aplicativos (Fembrapp) criticou o modelo de remuneração por hora trabalhada, alegando que levará a um trabalho excessivo e que deveria ser considerado o quilômetro rodado, além disso, defende que os motorista não devem ser abarcados pela Previdência Social, mas sim considerados microempreendedores individuais (MEI).
Projetos legislativos que colocam trabalhadores de aplicativos nessa condição de inferioridade de direitos não os reconhecendo como empregados propriamente ditos são uma tendência mundial, a exemplo do Reino Unido, França, Dinamarca, Espanha, Uruguai, Chile, com algumas pequenas variações entre si. São regulamentações feitas sob encomenda pelas empresas, principalmente a Uber, que lhes permite explorar o trabalhador em um nível mais elevado, sem remunerar por seus períodos de descanso nem fornecer os equipamentos necessários. Além disso, a inscrição na previdência é uma maneira de o estado desobrigar a empresa de qualquer indenização quando o trabalhador adoecer, ficar inválido ou morrer.
“A Uber considera a proposta elaborada pelo Grupo de Trabalho Tripartite do governo federal como um importante marco visando a uma regulamentação equilibrada o trabalho intermediado por plataformas. O projeto amplia as proteções desta nova forma de trabalho sem prejuízo da flexibilidade e autonomia inerentes à utilização de aplicativos para geração de renda. ” — Uber Newsroom
A ideologia do empreendedorismo e a consciência de classe
Desde que os trabalhadores de aplicativos se consolidaram como categoria há menos de uma década, vem se fortalecendo a ideologia de que não são empregados, mas empreendedores, patrões de si mesmos. Como boa parte desses proletários ingressam nesse ramo após uma demissão de uma relação de emprego, alimentam a ideia de que agora que não estão presos às amarras da CLT poderão fazer seus próprios horários e trabalhar o quanto quiserem.
Ocorre que a exploração desse trabalho se dá exclusivamente conforme as regras que as empresas estabelecem, e obviamente é bem mais selvagem do que a que se submete o proletariado clássico “celetista”. Como já salientamos no BB#52, o meio de produção não é o carro, mas sim o aplicativo, cujo funcionamento ainda é um mistério mesmo para os motoristas mais experientes. Além disso, as punições que as empresas aplicam aos motoristas não se sujeitam a nenhuma legislação, apenas aos termos de uso ao qual o trabalhador adere sem qualquer possibilidade de contestação.
Na prática, trabalhar mais não implica receber mais, pois entre “preços dinâmicos”, avaliações aleatórias, congestionamentos no trânsito, tempo de espera por alguma corrida e deslocamento não remunerado até o local de embarque do passageiro, muitos percebem a armadilha em que estão presos. Dados de 2023 do IBGE comprovam que os motoristas e entregadores de aplicativos recebem menos por hora trabalhada e trabalham mais horas por semana do que os que fazem a mesma função fora das plataformas.
“Trata-se, antes de mais, de uma reorganização global da força de trabalho, reservando-se estabilidade emprego a segurança social para uma minoria de profissionais altamente qualificados, e por isso mais produtivos, e condenando-se os restantes a uma actividade instável ou a tempo parcial, em boa medida excluída do quadro legal.” — João Bernardo
O proletariado com consciência de classe não pode se iludir com nenhuma das posições partidárias ou sindicais postas na arena política burguesa. O caminho para esse setor precarizado do proletariado não pode ser a negação dos direitos básicos previstos na CLT, nem uma solução intermediária, mas a reivindicação dessas garantias trabalhistas como patamar mínimo de dignidade, ou seja, para além desse mínimo, e ainda pleitear melhores condições e novos direitos specíficos de sua realidade laboral.
Resistir a esse projeto de lei complementar é uma tarefa na qual toda a classe deveria se engajar, pois maquiado de “regulamentação” de uma categoria específica, na verdade é um novo paradigma de regime de trabalho no Brasil, que visa dar sustentação legal para transformação em massa de empregados CLT em trabalhadores autônomos. É só o começo de um processo de legitimação de relações de exploração em que os proletários precisarão fornecer as ferramentas para executar o próprio trabalho e terão de ficar de sobreaviso aguardando a convocação de algum aplicativo, recebendo cada vez menos e sendo cada vez mais produtivos.
Essa manobra ideológica, cruel e sofisticada, de ressignificar a exploração da força de trabalho como se fosse mera prestação de serviços a uma massa de consumidores que irão avaliar o desempenho do trabalhador é também fruto da ausência do proletariado enquanto classe na cena política mundial, e só pode ser freada e revertida por meio da sua auto-organização.♟