Logo após o fim das eleições em outubro, a mídia corporativa praticamente não falou em outra coisa senão a Copa do Mundo de Futebol. Assim, pensamos ser relevante para o proletariado compreender algumas questões que envolvem esse evento e o mundo do futebol.
O capitalismo tardio do Catar
O Catar é um país controlado por uma família real islâmica, um regime absolutista dirigido por um Emir, e foi apenas um protetorado do Reino Unido até 1971, ano de sua independência e também o ano em que se descobriram grandes reservas de gás natural em seu território, sendo que desde 1939 já havia exploração de petróleo por lá. Porém, até 1995 era basicamente um país pesqueiro, até que o filho do Emir de então deu um golpe de Estado no próprio pai e iniciou um processo de modernização do capitalismo do país.
Atualmente, sua economia se sustenta na exploração de combustíveis fósseis, possuindo 10% das reservas de gás natural do mundo, ficando atrás apenas da Rússia e do Irã. Prevendo o declínio dessas comodities no mercado global em um futuro próximo, o atual Emir planeja transformar o país em um destino turístico para eventos de importância global – e a Copa do Mundo teria sido apenas o começo. Para isso realizou a Copa mais cara da história, tendo gasto cerca de 220 bilhões de dólares, sendo que a de 2018 na Rússia custou 11,6 bilhões e a de 2014 no Brasil cerca de 15 bilhões.
Com uma população total de cerca de 3 milhões de habitantes, apenas 300 mil são considerados cidadãos catarianos e contam com serviços estatais de alta qualidade, não recolhem impostos sobre seus salários e recebem subsídios nas despesas com água e energia elétrica. Os outros 90% da população são formados por uma massa de imigrantes do sul da Ásia, responsáveis por construírem com suas mentes, músculos e até com as próprias vidas toda a complexa estrutura urbana que se pode acompanhar durante a transmissão dos jogos neste ano. Submetidos ao regime da Kafala, herança do colonialismo britânico, esses trabalhadores imigrantes só poderiam entrar e sair do país com a autorização de seus empregadores, e até para mudar de emprego tal autorização é necessária. Nessa quase escravidão, a imprensa inglesa estima que cerca de 6.500 operários morreram sob o sol de 50°C, mas o governo do Catar só admitiu 500 dessas mortes.
Também por reflexo da tradição islâmica, lá as mulheres precisam de autorização de um guardião homem para praticarem atos da vida civil, estudarem ou viajarem. Além disso, práticas homossexuais são proibidas por lei, punidas com multa ou até pena de morte.
Diante de todo esse cenário de atraso nos costumes, nas liberdades individuais e nas leis trabalhistas, a imprensa corporativa vem fingindo estar indignada com a escolha do Catar como sede da Copa. Como se isso importasse para a FIFA – lembremos que em 1934 a sede da Copa foi a Itália de Mussolini e em 1978 a Argentina em plena ditadura militar. Essa mídia finge esquecer que os países de capitalismo primevo fizeram coisas muito piores durante os seus desenvolvimentos, em uma época sem televisão nem internet. Esse nível de exploração humana e opressão moral é típico de um capitalismo em formação, assim o Catar é apenas um país que ingressou tarde no xadrez imperialista do capitalismo mundial, e enquanto permitir a existência de bases militares dos EUA em seu território e se mantiver alinhado economicamente às potências ocidentais, será tratado com toda a paciência e condescendência por parte da “comunidade internacional”, ao contrário da Líbia, por exemplo.
“Vou dizer algo que é maluco, mas menos democracia às vezes é melhor para organizar a Copa do Mundo. (…) Quando você tem um chefe de Estado forte que pode tomar as decisões, como talvez o (presidente russo Vladimir) Putin possa fazer em 2018… Isso é mais fácil para nós organizadores.” — Jérôme Valcke, Secretário Geral da FIFA em 2013
O futebol e a indústria do entretenimento
O esporte mais popular do mundo é dominado de ponta a ponta pela lógica do capital. Entre os que o praticam de forma profissional há uma minoria de jogadores multimilionários e uma imensidão de atletas submetidos a salários baixíssimos e condições de trabalho muitas vezes degradantes. No Brasil, em 2021, constatou-se que 55% dos jogadores recebiam salário mínimo e apenas 12% tinham remuneração acima de 5 mil reais. Ressalte-se que se aposentam antes dos 40 anos e estão sujeitos a lesões que podem encerrar a carreira a qualquer momento. Isso sem considerar os outros profissionais envolvidos, tais como massagistas, roupeiros, zeladores, cozinheiros, etc. Para entendermos o nível de exploração é preciso citar que o futebol, enquanto indústria do entretenimento, é responsável por quase 1% do PIB Brasileiro, a título de exemplo, só em 2019 movimentou 53 bilhões de reais por aqui. Ainda, se analisarmos a diferença de rendimentos entre o futebol feminino e o masculino o cenário de desigualdade é ainda mais grave, analisando-se os melhores do mundo na última década (2011-2020) Messi ganhou 65 vezes mais do que Marta.
E como o capital parece ter ocupado por completo o tempo livre da humanidade, é impossível apreciar um jogo sem a lógica da mercadoria, seja no uniforme dos jogadores, nas placas dos estádios, na tela da TV, somos permanentemente expostos a marcas e estímulos de consumo. Além disso, como em todo esporte, as partidas cumprem um papel ideológico importantíssimo em favor do capital, promovendo a lógica da competição, da meritocracia e, especialmente quando envolvem seleções nacionais, tentando introjetar a dinâmica do imperialismo como algo natural para seus espectadores.
“Nosso clube se caracteriza por defender valores humanistas. Lutamos contra racismo, fascismo e qualquer tipo de discriminação. Desenvolvemos camisetas com os dizeres ‘no place for homophobia, facism, sexism, racism’. Esse é o núcleo de nossa postura” — Bernd von Geldern-diretor do FC St. Pauli
Um possível organizador social
Outro fator que deve ser abordado é a relação do proletariado com o futebol enquanto fenômeno social. Via de regra as organizações de torcidas em torno de clubes tendem a cultuar o que há de pior no capitalismo: violência, machismo, xenofobia e homofobia. Isso é o que ocorre quando a competição que o esporte promove se traduz em uma lógica de guerra, transformando algumas frações de torcedores em antros de fascismo.
Porém, existem alguns times cujas torcidas utilizam a união em torno do futebol para promover uma conscientização política progressista e reforçar laços nos locais de sua influência. É possível citar dois casos emblemáticos. Primeiramente a torcida do FC St. Pauli, em Hamburgo – Alemanha, que se uniu para combater o neonazismo e a homofobia nas arquibancadas, bem como utilizaram a estrutura do clube para realizar um trabalho de acolhimento de famílias imigrantes. Nessa mesma linha de atuação também se encaixa a torcida do Rayo Vallecano de Madrid – Espanha, com forte atuação antirracista, anti-homofóbica e de defesa de imigrantes. Em 2015 esses dois times realizaram um jogo que ficou conhecido como “clássico do povo”. Para esses torcedores, o resultado do jogo não é o que mais importa, pois sabem que seus times dificilmente conquistarão títulos grandiosos reservados a clubes com orçamentos muito maiores, mas são um exemplo claro de que o futebol pode servir como motivação para organizações proletárias em locais de moradia.
Embora tenha nascido no capitalismo, acreditamos que o futebol não lhe pertence, e que mesmo em uma sociedade comunista pessoas ainda irão se reunir para apreciar atletas demonstrando as habilidades quase circenses que a sua prática exige.♟