Piso salarial da enfermagem: luta ou concessão?

Piso salarial da enfermagem: luta ou concessão?

A luta do proletariado contra a exploração econômica tem se manifestado historicamente de diversas formas. Entre elas, a forma mais conhecida é a greve por aumento salarial. Seja meramente pautada pelas correções da inflação, por um aumento de ganho aquisitivo real que repercute numa melhora da subsistência, ou até mesmo por um piso salarial que permita uma condição plena da existência humana – utópico no capitalismo, diga-se de passagem – a luta contra a exploração da burguesia tem sido conduzida dessa forma. Porém, entre o proletariado da saúde no Brasil, especialmente a categoria da enfermagem – mas não só – há uma situação peculiar: nos últimos 20 anos a sua luta tem sido pautada pela redução do teto de carga horária semanal para 30 horas em 5 dias da semana. Por isso mesmo surpreende que um presidente da república sancione uma lei pelo piso salarial desta categoria, mesmo que de forma eleitoreira e apesar da suspensão pelo STF. Vamos tentar entender os meandros deste recorte da luta de classes.

1) Qual a diferença entre aumento salarial e redução da carga horária?

A extração da mais-valia, necessária para a produção de capital, é arrancada do proletariado pela burguesia basicamente de duas formas: absoluta ou relativamente. Na sua forma absoluta, a primeira adotada pelo capitalismo, durante e logo após a sua fase de manufaturas, é alcançada prolongando a jornada de trabalho. Já a mais-valia relativa se dá até mesmo quando há redução da jornada, pois ela ocorre ao aumentar a taxa de lucro através de jornadas intensas e extenuantes: aumenta-se a produção num menor espaço de tempo às custas da saúde do operário.

A reestruturação produtiva contínua do capitalismo têm levado a um aperfeiçoamento cada vez maior da extração da mais-valia relativa, reduzindo o tempo para produzir e os “poros” durante a jornada, isto é, aqueles períodos improdutivos, assim como os processos de menor produtividade. Se, na sua introdução, a extração da mais-valia sugava a força física do proletariado, gerando as famosas doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho (DORT), hoje em dia a sua intensificação é sentida na saúde mental, onde, nos casos de maior carga de cobrança, ocorrem epidemias de depressão grave, por vezes acompanhados por suicídio, como os casos da Renault no início do século XXI.

Portanto, nem o aumento salarial e nem a redução da jornada representam, necessariamente, uma redução da exploração. Nem vamos tratar aqui da questão inflacionária da conjuntura mais geral, mas tanto num como noutro caso eles geralmente são precedidos por um aumento da produtividade. Isto é, ou o salário aumenta numa proporção muito menor ao que se produz ou a jornada reduz, mas o proletariado produz um montante ainda maior. E por mais que tenha mais tempo para descanso com uma jornada reduzida, caso o salário não seja suficiente para a sua subsistência o operário precisará acumular a jornada em outro local para sobreviver.

“Os líderes do Partido (desde o Comitê Central até os encarregados de grupos locais) foram colocados, através da combinação das condições de luta contra o Czarismo e dos seus próprios conceitos organizacionais, numa situação a qual permitia a eles somente uma ligação tênue com o movimento operário real. ‘Um agitador operário’, escreveu Lênin, ‘que demonstre algum talento e seja muito promissor não deve trabalhar na fábrica. Nós devemos cuidar para que ele viva do apoio do Partido… e passe para a clandestinidade. Não é de se admirar que os poucos quadros bolcheviques de origem operária logo perdessem seus contatos reais com a classe.” — Maurice Brinton

2) Quando o salário mais elevado não garante saúde e nem qualidade de vida: o trabalho precário e insalubre

As lutas operárias começaram a ter resultado na redução da jornada, sua bandeira mais antiga, desde a Inglaterra, antes mesmo dos tempos que Engels estudava e trabalhava nas fábricas. E essa redução começou fragmentada: primeiro as crianças, depois mulheres, gestantes e, por fim, as operações insalubres. Na época a burguesia considerou razoável reduzir a jornada de 18 para 12h por dia para esses setores. No Brasil temos pessoas com jornadas de trabalho e também com o tempo para aposentadoria reduzidos (ainda). É o caso dos mineiros do carvão, que se aposentam com 15 anos devido ao risco da pneumoconiose, e dos profissionais da saúde, com 25 anos de contribuição.

Apesar de ser um produto de lutas históricas, a aposentadoria especial hoje em dia é tão medíocre que, mesmo sabendo dos riscos, os trabalhadores da saúde em geral optam por não solicitá-la e seguir trabalhando. Até 2019 era possível receber a especial e trabalhar, mas naquele ano uma mudança na lei proibiu essa possibilidade nas empresas públicas. Por esse motivo, os pedidos de aposentadoria especial vem reduzindo concomitante ao aumento do pedido de cancelamento daquelas solicitadas após 2019 – o pedido da especial é um processo lento e alguns resultados chegaram só este ano. O proletariado prefere correr o risco de adoecer e morrer mais cedo do que seguir vivendo à míngua.

Já com relação à jornada de trabalho, o aumento do salário sem mexer nela entra num contexto de grande estresse na categoria da enfermagem, excessivamente cobrada pelos gestores. A ideologia de se ver a profissão como um sacerdócio é enaltecida na enfermagem – e também entre outros trabalhadores da saúde. Porém, quando o proletariado tem perspectiva de ajudar seus camaradas e outros setores pauperizados da sociedade através do seu trabalho, mas percebe a dificuldade para conseguir alcançar ganhos reais, precisa lidar com um sentimento de frustração constante, e somado a isso tudo, é submetido a uma pressão por indicadores inalcançáveis, cria-se uma condição ainda pior chamada de “burn-out”. Reduzir a jornada é fundamental para atenuar essa agressão à saúde mental. Mas não é isso que as classes dominantes oferecem. Os gestores oferecem aumento do salário. E os sindicatos aplaudem.

3) Por que ocorrem as concessões ao proletariado?

Sabendo desses fatores, começa a ficar mais claro o recente acontecimento da concessão (apesar de suspensa) de um piso salarial. Por mais que ele represente um ganho substancial para a maioria dos trabalhadores da saúde do Brasil, o problema real são as jornadas de trabalho extenuantes, produção excessiva e constantes chamados para preencher lacunas nas escalas para dar conta de equipes subdimensionadas. Além disso, esse piso salarial não impede que enfermeiros com distintas cargas horárias, sejam elas de 20, 30, 36 ou 40 horas, recebam o mesmo salário. Isso pode, inclusive, gerar competição entre a categoria.

A concessão de um “benefício” ocorre justamente para atender uma demanda real, mas que não atinge a essência da produção. No caso da enfermagem, as trabalhadoras da saúde vão seguir com a mesma jornada e ainda sofrerão com a sua intensificação, afinal, quando o salário aumenta, burgueses e gestores sempre exigem o retorno desse “benefício”.

Claro que há também o componente eleitoreiro, que apesar de ter um peso menor na luta de classes diária, ilustra bem que não é apenas a esquerda do capital que concede reformas assistenciais: são medidas perfeitamente atendidas pela direita tradicional. E foi justamente o STF, tido por muitos como progressista, quem suspendeu o piso.

“O poder operário deve ser implementado ‘pela classe, não uma minoria, gerindo as coisas em nome da classe. Ele deve emanar do envolvimento ativo das massas, mantido sob sua influência direta, submetido ao controle de toda a população, resultado da crescente consciência política das pessoas.” — Rosa Luxemburgo

4) Como o proletariado auto-organizado se manifesta perante as concessões da burguesia?

Por mais que o velho ditado de que “cavalo dado não se olha os dentes” possa ser aplicado aqui, é preciso ter cuidado, pois quando se trata de mexer na subsistência a ideologia tem um peso mais forte. Fortalece a ilusão de que os problemas do capitalismo podem ser resolvidos dentro dele. Aqui é o primeiro ponto em que o proletariado organizado deve atuar. Por mais que pareça redundante para quem é organizado, é imprescindível repetir para a classe que esse caminho institucional para conquistar melhorias perpetua a exploração e legitima o controle da sociedade nas mãos de burgueses e gestores.

É importante trazer essa discussão para o cotidiano do nosso trabalho, sobre quem decide e como aparecem as bandeiras da via democrático-parlamentar. Alertar para a ausência do proletariado nas pautas políticas. Denunciar sindicatos e aqueles que dizem representar a classe no parlamento. Ilustrar com esse exemplo prático que as pautas genuínas da classe dificilmente são assimiladas pelas instituições do capitalismo. E, dessa forma, compreender por que não há espaço para as demandas mais profundas do proletariado dentro das instituições, sindicatos, parlamentos e partidos da ordem.

A única via que resta é ir às ruas, paralisando a produção das fábricas e demais locais de trabalho. É trazer para o lado de cá o controle das coisas e da sociedade. Mostrar que é na força de trabalho que está o poder que de fato move o mundo.♟