Desde os tempos mais remotos a humanidade se deslocou e foi assim que a terra foi povoada por todo seu território. Na modernidade, pessoas batem à porta das outras fugindo de seus países em função da violência das guerras ou da brutalidade da fome, consequências diretas do modo de produção capitalista. Para os que estão do lado de dentro, muitas vezes estes são vistos como hóspedes indesejados. São desconhecidos envoltos por todo tipo de preconceito. Essa visão estereotipada dos migrantes/refugiados é constantemente alimentada pela mídia (noticiários de TV, manchetes de jornal), discursos políticos do campo da direita e extrema-direita, redes sociais, que não se cansam de mencionar a “crise migratória” que assola o mundo e que sinaliza para a dissolução do modo de vida tal qual conhecemos, para a quebra dos valores culturais locais, devido à “invasão” do “estrangeiro” que chega com hábitos diferentes, capazes de “destruir as identidades nacionais”. Tal situação gera uma espécie de medo compartilhado socialmente. As razões de fundo que levam as pessoas a migrarem ou solicitarem refúgio são ocultadas e geralmente o fenômeno é justificado pelos “radicalismos” atribuídos às religiões não ocidentais. Isso lentamente vai nos acostumando com a tragédia dos refugiados: pessoas mortas afogadas ao tentarem alcançar outras terras, construção de muros, campos de concentração superlotados e insalubres, traumas e violações variadas. Aos poucos, nada disso parece impactar quem está minimamente seguro dentro do próprio país e da própria casa, por mais precária que ela seja. Infelizmente, discursos xenófobos como os usados por Donald Trump e Marine Le Pen, em suas respectivas campanhas, por exemplo, encontram eco também no interior do proletariado mundo afora.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 reconhece o direito de todas as pessoas circularem livremente e escolherem sua residência em qualquer lugar do planeta. No entanto, a livre circulação está sujeita à proteção do Estado-Nação, de modo que cada país cria, de acordo com seus interesses, leis para orientar as chamadas “políticas migratórias”. Tais regramentos costumam oscilar de acordo com o governo do momento, mas independente de sua linha política, todos privilegiam os interesses do Estado e empresas em detrimento das necessidades das pessoas. Tendo por base tais diretrizes e parâmetros jurídicos, é comum a expressão “imigrante ilegal” o que é uma contradição em termos, pois sendo um direito humano, nenhum imigrante deveria ser ilegal – no máximo ele/ela pode estar sem documentos.
A ACNUR – órgão da ONU para refugiados – alerta para a necessária distinção entre refugiados e migrantes. Os refugiados são aqueles(as) que deixaram tudo para trás para escapar de conflitos armados ou perseguições. Com frequência, sua situação é tão perigosa e intolerável que cruzam fronteiras internacionais para buscar segurança em outros países. Catástrofes naturais, mudanças climáticas, perseguições políticas, crises econômicas e sociais internas também podem caracterizar situação de refúgio. Já os migrantes escolhem se deslocar não por causa de uma ameaça direta de perseguição ou morte, mas principalmente para melhorar sua vida em busca de trabalho ou educação, por reunião familiar e razões variadas. Tal distinção é importante, pois existe um regramento específico para a situação das pessoas refugiadas que deve ser respeitado internacionalmente, uma vez que para estas pessoas a negação de uma solicitação da condição de refugiado pode ter consequências fatais. Ou seja, pode determinar a vida ou morte da pessoa.
“A migração em massa não é de forma alguma um fenômeno recente. Ela tem acompanhado a era moderna desde os seus primórdios já que o nosso modo de vida inclui a produção de pessoas redundantes, localmente inúteis, excessivas ou não empregáveis, em razão do progresso econômico ou localmente intoleráveis, rejeitadas por agitações, conflitos e dissensões causados por transformações sociais/políticas e subsequentes lutas por poder.” — Zygmunt Bauman
Como se fabrica um culpado
Até o final de 2019, mais de 79,5 milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas regiões de moradia, em função de perseguição, conflitos armados, violência generalizada ou violações de direitos humanos. Esse é o maior número de pessoas forçadamente deslocadas desde a Segunda Guerra Mundial. Na população mundial, 1 a cada 110 pessoas são solicitantes de refúgio, deslocados internos ou refugiados. A maioria dos refugiados é proveniente do Oriente Médio e da África. Atualmente, de acordo com os dados da ONU, são cerca de 281 milhões de pessoas migrantes no mundo, o que equivale a aproximadamente 3,6% da população mundial.
Em função de instabilidades de natureza variadas nos países da zona do euro, foi conveniente aos profissionais da política atribuir ao diferente, o estrangeiro, a responsabilidade pela falta de empregos, crises políticas e da retração econômica. A dura política migratória segue a cartilha da austeridade econômica além de assentar-se em base eurocêntrica que finge ignorar as consequências da dominação da Europa sobre grande parte do mundo, os diferentes níveis de desenvolvimento provocados pelo colonialismo, a constituição multicultural e diversa no próprio continente, entre outros fatores. O discurso enganoso das classes dominantes diz ser insustentável aos europeus receber tão grande contingente de pessoas, tanto por problemas econômicos quanto políticos. A realidade, no entanto, é que a Europa, com alto grau de desenvolvimento capitalista, somente recebe 6% dos refugiados mundiais. Para fins de comparação, até 2015 o Reino Unido acolheu apenas 8 mil refugiados da Síria. Em contrapartida, a Jordânia abriga no seu território 655 mil sírios, mesmo tendo uma população quase 10 vezes menor que a britânica e o seu produto interno bruto (PIB) sendo equivalente a 1,2% da produção de riquezas do Reino Unido.
“As políticas migratórias se destinam a consolidar uma divisão entre duas grandes categorias mundiais cada vez mais reificadas: de um lado um mundo limpo, saudável e visível; de outro, o mundo dos ‘remanescentes’ residuais, sombrio, doente e invisível. A continuarem as práticas como são, os campos não serão usados para manter vivos os refugiados vulneráveis, mas para reunir e vigiar todos os tipos de população indesejável.” —Michel Agier
Situação no Brasil
O Brasil, ao longo de sua história, recebeu diferentes grupos étnicos que vieram povoar o país desde a chegada dos portugueses, cujo sistema econômico escravocrata forçou a vinda de diferentes povos do continente africano. Mais tarde, entre os séculos XIX e XX, vieram outros grupos europeus e asiáticos que ao mesmo tempo em que substituíram a força de trabalho do escravo, em função da abolição da escravatura, também forjaram um processo de embranquecimento da população, desejado pelas elites políticas da época. Por aqui, à exceção dos indígenas, todos temos um antepassado migrante. Após a Segunda Guerra Mundial, o fluxo migratório internacional sofreu uma desaceleração. No entanto, na última década essa realidade foi alterada com a entrada de um número significativo de refugiados e migrantes provenientes sobretudo da Venezuela, Síria, Congo, Senegal, Haiti, e outros países em contingente menos significativo. Cerca de 60 a 80 mil solicitações de refúgio são feitas anualmente. Em torno de 20% são aceitas. As demais ficam aguardando serem apreciadas, com chance significativa de serem negadas. Nesse lento processo burocrático, chama a atenção a celeridade com que têm sido tratadas as solicitações de refúgio apresentadas pelos ucranianos se comparadas às das populações negras, árabes e latinas.
Além da lentidão legal, outro grande problema é a difusão de que pessoas refugiadas/migrantes são uma ameaça à segurança nacional, reforçando sentimentos xenofóbicos e corrompendo os laços de solidariedade, sobretudo de classe, que deveriam se sobrepor a quaisquer outros. Exemplo disso é o triste episódio ocorrido com o jovem congolês Moïse Kabagambe que foi amarrado e morto a pauladas na Barra da Tijuca, bairro de alta renda do Rio de Janeiro, para cobrar duas diárias não pagas por um serviço prestado. Segundo várias testemunhas à época, Moïse recebia um salário inferior ao de seus colegas brasileiros. A ideia segundo a qual o “brasileiro é um povo acolhedor” não corresponde aos fatos. Foi mais simples discriminá-lo por ser congolês do que acolhê-lo como alguém que precisou deixar para trás seu país, sua língua, costumes, amigos e familiares por uma busca incerta por trabalho e um local pacífico para morar, comer e dormir com um mínimo de segurança e dignidade.
O capital não reconhece fronteiras quando busca ampliar seus mercados consumidores, movimentar as mercadorias que produz ou obter condições mais vantajosas para a extração da mais-valia. Habitamos todos um mesmo planeta. Não temos país, temos classe. A geografia não nos define. Precisamos nos reconhecer como proletários uns nos outros, independente de onde nascemos, reacender a chama da solidariedade internacionalista e lutar para que todas e todos possam deslocar-se livremente, sem se submeter a barreiras, fronteiras, vistos e permissões policiais.♟