Em seu número de setembro de 2017 (22) Este Boletim marcou com clareza que o “Socialismo do século XXI” ou a tal “Revolução Bolivariana” nunca passou de uma farsa. Em seus melhores dias não conseguiu sequer concluir as tarefas históricas da Revolução Burguesa ainda pendentes na Venezuela. A farsa do “Socialismo Bolivariano” tampouco pode ser comparada a processos revolucionários autênticos (como a Rev. Russa, Chinesa e Cubana) que efetivaram melhorias imediatas na condição de vida de toda a população desses países. Diante disso, fica evidente que a fase decadente dessa farsa (o Regime de Maduro) a cada dia aprofunde o seu esgotamento político com o reforço das oposições em nível interno e internacional.
Nesse cenário, a crise interna venezuelana criou as condições para que os EUA pudessem tentar trazer novamente a Venezuela para o seu “quintal” geopolítico. A figura de Juan Guaidó se prestou ao papel demandado por Trump e autoproclamou-se presidente interino do país. Assim, na Venezuela, pouco, ou nada, realmente é o que parece. O “socialismo” de Maduro não passa de um caudilhismo tardio latino-americano e o surgimento de Guaidó nada tem a ver com um levante libertador de viés democrático. Nesse esforço de reenquadramento geopolítico da Venezuela, crescem as possibilidades de uma “solução” que passe pela intervenção militar direta dos EUA e seus aliados (OTAN e Governos da Colômbia e Brasil) no país vizinho. Para tanto, artifícios estão sendo fabricados e utilizados.
O primeiro artifício estadunidense — verdadeiro “presente de grego” — vem sob a forma de uma suposta ajuda humanitária oferecida ao povo venezuelano. Por meio de um intenso bombardeio midiático, dado que as democracias ocidentais exercem uma hegemonia esmagadora sobre os fatos que o mundo toma conhecimento, se divulga pelo planeta que o regime de Maduro não só provoca a fome de seu povo (verdade) como se recusa a permitir a entrada de alimentos, medicamentos e segurança (falso: as democracias “humanitárias” não permitem que as três ajudas sejam separadas). Assim se desmascara que a “ajuda” não passa de uma tentativa de fazer entrar forças armadas estrangeiras no país “beneficiário”, sob o argumento da necessidade do estabelecimento de “corredores logísticos” para garantir que a ajuda chegue aos necessitados.
Trata-se de uma etapa da política imperialista de mudança de regime, objetivo do governo Trump desde o princípio. Pode-se conhecer seus resultados analisando a materialidade da sua aplicação em alguns dos países onde foi recentemente praticada: Líbia, Iraque e Síria. A primeira regrediu 2.000 anos, tornando-se um regime tribal incapaz sequer de estabelecer um governo único. O segundo foi transformado em base territorial para expansão do obscurantismo wahhabista do Regime Saudita, fonte maior do terrorismo mundial e da interpretação mais reacionária e ultraconservadora da religião muçulmana. E a terceira, onde esta política não atingiu seus objetivos, está esfacelada a ponto do proletariado sírio sequer ter energia elétrica e gás para cozinhar. Isso sem falar do desastre no Sudão. Nessas estruturas de classes, o preço pago pela classe proletária para atender às demandas do capitalismo de ponta é ainda maior. Portanto, não restam dúvidas de que uma tal “ajuda humanitária” apenas piorará as condições de vida do proletariado venezuelano.
Outro artifício está em levantar a bandeira da democracia e dos direitos humanos para ocultar medidas de bloqueio econômico, voltadas para dificultar ao máximo o acesso do Regime de Maduro aos mercados externos. O compromisso de figuras como Trump e Bolsonaro é com o processo de lucratividade do Capital, seja em regimes democráticos, seja em regimes ditatoriais. Por outro lado, é necessário atentar para o total fracasso da política bolivariana, aplicada com maior fôlego justamente… na Venezuela!
“Tanto os velhos profissionais quanto os recém-chegados desencantados pedem aos proletários que subscrevam um ou outro tipo de programa intervencionista, antifascista ou de defesa prioritária da democracia, citando as derrotas e frustrações sofridas no passado por todo grupo firmemente decidido a manter intacta até o final a autonomia proletária. A futilidade extrema desta “demonstração histórica” foi mostrada acima: a derrota proletária durante a guerra e no período do imediato pós-guerra não resultou tanto do fracasso das tentativas da minoria revolucionária quanto, infelizmente, da política da maioria dirigente.” — Karl Korsch
Ovacionado pela esquerda do capital, o bolivarismo corresponde à ideologia dessa esquerda que estava em voga antes da onda do identitarismo: o culto ao nacionalismo. No Brasil e em outras partes do mundo já sabemos ao que essa ideologia abriu caminho. Ao colocar um fator externo à classe como causa do sofrimento de um país ou de um continente, o combate à exploração do proletariado fica em segundo plano, substituído pelo combate à outra nação ou nações e pelo culto à soberania nacional. A reboque do caráter supraclassista do nacionalismo vem a valorização do exército nacional. A experiência venezuelana de tomada de poder pelo exército nacional apoiada pela esquerda do capital não é única no mundo. A esquerda do capital portuguesa também saudou a tomada do poder pelos militares na chamada “Revolução dos Cravos” de abril de 1974.
Nesse contexto, o problema da Venezuela, para o proletariado, não começa com Maduro. Em 2008, Chávez reprimiu os metalúrgicos da Tenium-SIDOR em luta por melhores salários. A mídia chavista-bolivariana seguiu os manuais burgueses de manipulação de informações e defendeu a estatal com os mesmos velhos argumentos capitalistas de falta de condições financeiras para tal. Nesta mesma época, Chávez iniciou algumas reformas semelhantes às que ocorreram no Brasil, no governo Lula, para permitir que as negociações de acordos individuais se sobreponham às coletivas. Sem falar dos sete assassinatos mencionados no BB 22.
“O Estado tem uma função social específica. […] Garantir o domínio de uma classe sobre outra ou outras. Onde quer que ele exista, qualquer que seja a sua forma, quem quer que esteja no seu comando, o Estado sempre foi e sempre será instrumento de dominação. Sempre utilizará de violência contra parte da sociedade. Por isso, nunca vai ser um meio de conquista da verdadeira liberdade humana e da igualdade substancial (e não apenas formal). […] O Estado nem sempre existiu […] nós podemos viver sem ele! O Estado não é algo essencial para a nossa vida.” — Zilas Nogueira
Diante desse acirramento da polarização entre dois bandos capitalistas, não cabe ao proletariado em geral e à sua parcela com consciência comunista em especial, escolher um lado. Mesmo diante de limitações sérias como a dificuldade de acesso a fontes confiáveis, que deixa a mídia do capital como único reduto informativo, e de uma pequena rede de contatos, o rico acúmulo de experiências de nossa classe pode servir de contrapeso. Essas experiências históricas — sem prejuízo de continuar a construir, via internacionalismo proletário, uma rede de informações de camaradas nas proximidades para informar o que ocorre sob nossa perspectiva de classe — nos ensinam que, se uma situação como essa evoluir para uma guerra, teremos de adotar uma atitude militante de impedir que ela se desenvolva por todos os meios ao nosso alcance.
Uma guerra entre facções burguesas e gestoriais sempre será uma guerra injusta, pois, entre tantos outros fatores, invariavelmente implica na apropriação por alguns poucos de riquezas que pertencem ao conjunto da humanidade, logo deveriam ser exploradas de forma autogerida visando a produção e reprodução da vida material. Contra os militarismos de direita e de esquerda e os pacifismos ilusórios das camadas médias, a atitude proletária a ser tomada na prática diante de guerras injustas será a de assumir em todas as dimensões e consequências a consigna: “Guerra às guerras injustas”.♟