A Greve metalúrgica nos EUA e as engrenagens do sindicalismo

A Greve metalúrgica nos EUA e as engrenagens do sindicalismo

Sob determinação da direção do Sindicato dos Trabalhadores Automotivos – United Auto Workers (UAW) – 45.000 operários das montadoras GM, Ford e Stellantis encontram-se neste momento paralisados na greve que já é considerada a maior da história da categoria nos Estados Unidos.

Com a aparente contradição entre, por um lado, trabalhadores com baixos salários, cortes em benefícios, instabilidade no emprego e submissão a um sistema de pagamento desigual em “castas”, e por outro lado, seus empregadores auferindo lucros recordes no primeiro semestre do ano, o pavio do barril de pólvora da luta de classes foi aceso no interior da produção de um dos bens de consumo mais emblemáticos do país ianque: o automóvel. A contenda já atraiu visitas de ambos presidente e ex-presidente, Joe Biden e Donald Trump, buscando aprimorar suas respectivas reputações e angariar votos para a campanha de 2024. Para compreender os possíveis ganhos que esta luta contra as três maiores fabricantes de automóveis do país poderá trazer para o proletariado, e também suas limitações, é preciso mergulhar na história do sindicalismo estadunidense.

Origem e decadência de um modelo de luta

Apesar da greve da UAW trazer novos elementos à forma de luta sindical, como a tática de greve direcionada, que visa aplicar pressão gradual afetando plantas de produção estratégicas, a busca de melhores condições econômicas organizada por dentro dos sindicatos remonta às origens do próprio capitalismo colonial nos EUA.

À medida que o país se desenvolvia, também crescia a necessidade de trabalho organizado. Artesãos qualificados formaram as primeiras associações, principalmente para proteger seu ofício e manter altos padrões de acabamento. Esses primeiros sindicatos eram mais parecidos com agremiações profissionais e muitas vezes excluíam trabalhadores não qualificados.

Conforme o século XIX avançava, o mesmo começava a ocorrer com o movimento operário. Os Knights of Labor surgiram na década de 1860 como uma das primeiras organizações trabalhistas nacionais a incluir trabalhadores qualificados e não qualificados. Os seus objetivos eram mais amplos, defendendo uma jornada de trabalho de oito horas, salário igual para trabalho igual e outras reformas laborais.

O final do século XIX marcou um desenvolvimento significativo no movimento trabalhista americano com o estabelecimento da Federação Americana do Trabalho (AFL) em 1886. A AFL consistia principalmente em sindicatos artesanais que representavam trabalhadores qualificados e concentrava-se em alcançar melhorias concretas para os seus membros, tais como salários mais elevados, melhores condições de trabalho e jornadas de trabalho mais curtas, muitas vezes através de negociação coletiva. Aderiu a uma abordagem de sindicalismo empresarial, concentrando-se em questões econômicas e não em objetivos sociais e políticos mais amplos.

Embora a AFL representasse trabalhadores qualificados, havia um descontentamento crescente entre os trabalhadores não qualificados e um desejo de uma abordagem mais radical à organização do trabalho. Isto levou à formação dos Trabalhadores Industriais do Mundo (IWW) em 1905. A IWW, também conhecidos como Wobblies, rejeitaram o modelo artesanal da AFL e procuraram unir todos os trabalhadores, independentemente da habilidade ou profissão, sob uma única bandeira. Promovendo a ideia de “Uma Grande União” a IWW almejava mudanças revolucionárias, defendendo a abolição do sistema salarial. Um aspecto fundamental do radicalismo da IWW foi a sua rejeição da negociação coletiva e dos contratos com os empregadores. Em vez disso, promoveram a tática da greve geral imaginando um mundo onde os trabalhadores derrubariam totalmente o sistema capitalista.

A crise no bojo do movimento revolucionário internacional, somado à estabilidade econômica na América pós-Segunda Guerra arrefeceu o ímpeto político das lutas sindicais. Em contraste com o radicalismo da IWW, muitos sindicatos tradicionais começaram a abraçar uma abordagem cada vez mais corporativa ao longo do século XX. Anos de perseguição sob o macarthismo suprimiram a atuação dos quadros mais radicais nos comitês sindicais, e à medida que os sindicatos se expandiram e se tornaram mais integrados na sociedade, procuraram apelar à uma base de associados mais ampla, necessitando de uma abordagem mais moderada e pragmática.

Também durante o século XX, ao mesmo tempo em que os sindicatos esgotavam-se de seus elementos políticos, o movimento sindical avançava em sua degeneração desenvolvendo um relacionamento estreito com o crime organizado. As organizações criminosas não só tiveram ganhos através de extorsões e propinas, controlando substanciais recursos financeiros, como também utilizaram-se da estrutura dos sindicatos para influenciar eleições e afetar a legislação a fim de facilitar suas operações. Este promíscuo relacionamento articulado pela burguesia culminou na promulgação da RICO (Lei de Organizações Corruptas e Influenciadas por Extorsão) em 1970, que permitiu às autoridades processar funcionários sindicais envolvidos em atividades de crime organizado. O movimento sindical tornou-se mais do que nunca mais um componente do sistema capitalista.

“Hoje, nos EUA, as lutas são conduzidas por organizações conservadores como AFL e CIO (Congresso de Organizações Industriais). Porém aqui e ali, acontecem greves espontâneas que são condenadas por todas as organizações conservadoras existentes, indicando a forma que a guerra de classes poderá assumir quando essas organizações forem completamente absorvidas pelo Estado. Esses movimentos dos trabalhadores são raros e isolados hoje” — Sam Moss, 1939

UAW: Um legado controverso

Dado o escopo e relevância da greve dirigida pela UAW, não podemos nos furtar do exercício de análise desta organização. A cooptação do movimento sindical pela burguesia fica mais do que evidente quando escândalos emergem do núcleo da UAW, uma das mais importantes e numerosas organizações sindicais dos Estados Unidos, como o acordo proposto pela General Motors em 2007, aceito pela UAW em que a montadora terceirizou a administração de benefícios de saúde para o sindicato, negociando o pagamento de 55 bilhões de dólares “de acordo com a lucratividade da empresa”.

Ou seja, ao mesmo tempo descarregando o compromisso de fornecer os importantes benefícios de saúde e impondo a responsabilidade de manter os lucros elevados aos trabalhadores. Foi deste contrato também que instituiu-se o sistema de “castas”, o qual está sendo contestado na greve atual, em que trabalhadores de mesma função são pagos de forma drasticamente desigual de acordo com seu tempo de contrato.

Outro escândalo protagonizado pela UAW ocorreu em 2017 quando investigadores federais apuraram alegações de corrupção dentro da direção da UAW. Vários gestores do sindicato foram implicados no escândalo, incluindo o ex-presidente do UAW Gary Jones e o ex-vice-presidente do UAW Joe Ashton. A questão-chave no centro do escândalo foi a utilização indevida de fundos sindicais para despesas pessoais, incluindo férias luxuosas, jantares nababescos, imóveis e veículos de luxo.

O escândalo também revelou uma rede de impropriedades financeiras, propinas e esquemas de peculato explicitando a estreita relação entre a liderança da UAW e a indústria automobilística, incluindo alegações de executivos das montadoras que subornavam dirigentes sindicais para obter condições contratuais favoráveis.

“Como método de luta contra a sociedade capitalista, o sindicalismo industrial, não é suficiente para, por si só, derrubar essa sociedade e conquistar o mundo para os trabalhadores. Combate o capitalismo sob a sua forma patronal, no setor econômico da produção, mas não se pode declarar contra o seu baluarte político, o poder estatal. Contudo, os I.W.W. foram até hoje a forma de organização mais revolucionária nos EUA.” — Anton Pannekoek, 1936

O questionável método da luta sindical

Episódios em que os sindicatos agem em colaboração com a classe burguesa em detrimento dos trabalhadores traduzem a razão de existir dessa instituição, entretanto não devemos desconsiderar os ganhos imediatos que esta forma de luta pode proporcionar. Melhores condições materiais são eventualmente alcançadas quando as greves são vitoriosas, entretanto estas reformas são em grande maioria diminutas e recuperadas pela classe dominante no médio e longo prazo. Assim, ao questionar as perspectivas dessa forma de mobilização não podemos diminuir os esforços dos trabalhadores.

Em um estágio inicial da luta, a tradição sindical até pode despertar entre os trabalhadores engajados nas greves e piquetes sua consciência enquanto proletários e sua solidariedade de classe. Porém exercerá um papel desmobilizador e até repressivo caso surjam sinais de autonomia na organização das lutas ou questionamentos mais profundos sobre a relação de exploração.

Além disso, seu caráter reformista engessa as lutas proletárias de acordo com a legislação de cada país, minando a essência internacionalista delas. Assim, se depender do sindicalismo de estado, essa luta dos operários dos EUA não irá se alastrar para as fábricas do Brasil ou da Índia, pois supostamente seriam demandas diferentes sob legislações diferentes. O capital, transnacional, agradece.

É preciso contestar instituições burocráticas que atribuem para si a tarefa de travar a luta de classes. Apenas criando suas próprias instituições será possível que a classe proletária complete sua tarefa histórica de conduzir a humanidade para a superação do capital em nível mundial. ♟