Historicamente populações já foram dizimadas por epidemias: Peste Negra (séc. XIV), Cólera (séc. XIX), Tuberculose (séc. XIX), Varíola (séc. XX) e Gripe Espanhola (séc. XX). Na era da tecnologia globalizada do capital, as mudanças nos padrões de mortalidade deram a impressão de que as doenças infecto-parasitárias eram uma preocupação dos países “atrasados”, que “ainda” não alcançaram o desenvolvimento dos países com capitalismo de ponta. Porém, o novo coronavírus (ou, mais corretamente, SARS-Cov-2) veio para provar que o capital é incapaz de gerir crises de uma forma que não seja às custas das vidas do proletariado. Um erro crasso, por exemplo, foi não ter aprofundado estudos quando a SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), considerada a primeira nova doença do séc. XXI, surgiu há alguns anos. Nesse sentido, o avanço tecnológico que permite reconhecer a sequência genética de um novo vírus no período recorde de 7 dias não significa que essa sociedade tenha capacidade para impedir uma crise de saúde pública planetária. Isso se deve ao modo como se produz e reproduz a vida: o modo de produção capitalista.
Fica claro que boa parte do proletariado não tem acesso aos itens mais básicos como água, sabão e álcool. Aos trabalhadores da saúde faltam máscaras adequadas, óculos de proteção e aventais descartáveis. Nos hospitais faltam leitos, respiradores e trabalhadores, fazendo com que – por decreto – estudantes da área da saúde ainda não formados tenham que auxiliar nesse processo. Por fim, para impedir a transmissão intercontinental faltam itens como os kits de testagem. É evidente que o foco não é conter a pandemia e a morte do proletariado – afinal são em sua maioria aposentados e adoecidos, logo improdutivos para o capital – mas impedir que a economia de mercado sofra abalos drásticos.
Mesmo lerda no combate ao vírus, a burguesia brasileira foi rápida em implementar medidas para salvaguardar a si mesma: decretou estado de calamidade pública até o fim de 2020, promoveu cortes de salários com redução pela metade, afastamentos do trabalho às custas do INSS (apesar do suposto déficit), parcelamento de dívidas públicas, contratações sem licitação, redução de juros para os empréstimos de empresas de turismo e adiamento do prazo para as companhias aéreas devolverem o dinheiro das passagens canceladas. Imediatas e travestidas da tentativa de assegurar a manutenção dos empregos, essas medidas se destinam aos trabalhadores com carteira assinada, mas quando olhamos para os trabalhadores informais precarizados – sendo que a taxa de informalidade ultrapassa 41% – o impacto é ainda maior. Mais recentemente, o governo aprovou um auxílio mensal de 600 reais para MEI (Microempreendedor Individual), informais e desempregados; cabe ressaltar que Paulo Guedes ofereceu, em sua primeira versão, 200 reais. Tudo isso após anunciar um decreto que deixaria os trabalhadores sem salário por 4 meses para que o empresariado pudesse se “recuperar” e depois, após repercussão negativa, voltar atrás alegando erro de digitação. Após a falha na contenção da COVID-19, resultante de uma estratégia de não testar todos viajantes e deixar o contágio ocorrer livremente, a cargo do controle individual, o Ministro da Saúde aponta uma medida coletiva de Saúde Pública que já era esperada e da forma que o Estado está acostumado a gerir a sociedade: isolamento social e quarentena.
Do ponto de vista dos trabalhadores essa é uma luta para reduzir prejuízos. Primeiramente, reduzir o prejuízo humano, contabilizado em mortes e sequelados. Depois, o prejuízo decorrente de todas as restrições e efeitos sociais colaterais, que necessariamente ocorrerão em cadeia. Entre assalariados e trabalhadores informais precarizados são muitos os que não têm condições de cumprir o isolamento social – ou encarceramento, pois está prevista prisão por até um ano para quem infringir as normas de isolamento e quarentena e os exames médicos compulsórios; a polícia tem poder de encaminhar as pessoas para as suas residências; agentes de vigilância epidemiológica podem demandar apoio policial para cumprir as suas ordens. É por questões concretas e não por mera ideologia ou questões “culturais” que parte dos brasileiros não cumpre essas normas autoritárias da saúde pública: domicílios insalubres com poucas condições de higiene e conforto. No Rio de Janeiro, vice-líder no número de casos confirmados, os jornais reportam diariamente bairros inteiros sem abastecimento de água. Em Porto Alegre, apesar de escondida dos noticiários nacionais, as comunidades vão às ruas para protestar contra a mesma falta d’água que agrava ainda mais o quadro pandêmico, enquanto que os patos do “Parcão” (parque elitizado da capital gaúcha) recebem o seu caminhão pipa para não deixar secar o laguinho. O exemplo da diarista que faleceu sem ser informada pela sua patroa do risco de contágio é emblemático. Esse é o resultado do controle da vida coletiva nas mãos da burguesia. Todos os transtornos sociais dos últimos dias são muito mais uma consequência dessa forma de gerir a sociedade do que da pandemia em si.
“Já mencionei atrás a atividade invulgar que a polícia sanitária dispendeu por altura da epidemia de cólera em Manchester. Com efeito, quando esta epidemia começou a se aproximar, apoderou-se da burguesia desta cidade um medo generalizado. De repente lembraram-se das habitações insalubres dos pobres, e tremeram com a certeza de que cada um destes bairros miseráveis ia constituir um foco de epidemia, a partir do qual esta estenderia as suas raízes em todos os sentidos para as residências da classe exploradora.” — Engels
O investimento no combate ao COVID-19 também pode ser considerado como mais uma péssima gestão de grandes desastres por parte do governo Bolsonaro (lado a lado com o incêndio na Amazônia e o óleo no mar do Nordeste); é o equivalente a pouco mais de 2% do PIB, ante 17% em alguns países. Até mesmo EUA e México, que praticavam políticas semelhantes, agora adotam a quarentena e investem cerca de 7% do seu PIB em medidas de cuidados sociais. Ao mesmo tempo, é provável que ao fim da crise pandêmica, caso o Brasil tenha menos mortes em relação a outros países (devido às medidas de isolamento adotadas), Bolsonaro alegue que, no fim das contas, era apenas um “resfriadinho” mesmo.
Hoje, para o enfrentamento de um vírus de tal magnitude é fundamental a participação dos trabalhadores da saúde. Mas isso não significa que seria dado a eles um poder maior de controle em virtude do seu conhecimento. Não faltam nas redes sociais profissionais da saúde negacionistas do problema. O fracasso na contenção das transmissões demonstra que não basta o conhecimento científico. É preciso que o controle da produção esteja a serviço de necessidades da vida material. Se no momento é preciso mais kits de teste, que os operários da indústria automobilística, do vestuário, dos eletrônicos, abandonem as suas fábricas de origem e se voltem a isso. Se no momento, álcool-gel, máscaras e aventais descartáveis são mais importantes que smartphones é para isso que deve se voltar a produção. E isso só é possível em tempo hábil se o controle da produção estiver nas mãos do proletariado, e não na mão da burguesia ou de burocratas.
“A mera concentração da população nas grandes cidades já exerce uma influência deletéria. A atmosfera não pode ser tão pura e rica em oxigênio e favorece todo o tipo de pestes; 2,5 milhões de pessoas respirando e 250 mil casas amontoadas numa área de três milhas quadradas consomem uma enorme quantidade de oxigênio que dificilmente se renova, uma vez que a arquitetura citadina não favorece a circulação do ar. Os pulmões dos habitantes não recebem a porção adequada de oxigênio e a contaminação é incontornável. É verdadeiramente revoltante o modo como a burguesia moderna trata a imensa massa dos pobres.” — Engels
A Comuna de Paris, por exemplo, em 1871 promoveu grandes mudanças essenciais na vida parisiense em menos de dois meses, desde a forma de organização das forças militares a isonomias salariais, separação entre Igreja e Estado e até a revogabilidade de todos os representantes. Tudo isso sem qualquer recurso virtual ou de comunicação digital instantânea. Nesse sentido, o proletariado historicamente tem demonstrado outras formas de administrar a sociedade, de forma autônoma, autogerida, desde a Comuna, como precursores dos movimentos de massa anti-burocráticos; como em 1905, quando as próprias massas em luta criaram os sovietes na Rússia. Nesses momentos o proletariado demonstrou toda a sua capacidade criativa para gerir a sociedade através de uma mudança fundamental nas relações de produção.
Não é regra histórica que guerras ou doenças desencadeiam transformações políticas radicais. Assim, não há porque esperar alguma mudança no mundo por causa de uma pandemia. Por isso, neste momento precisamos ter autodisciplina para poder suportar o isolamento social (ou adotar medidas de redução de danos, para aqueles que não podem estar em quarentena). Uma vez vencido o período crítico, necessitamos de auto-organização para impedir que o ônus gerado nesse intervalo recaia sobre os ombros do proletariado. A mesma auto-organização que já vemos se manifestar entre alguns trabalhadores ao redor do mundo, quanto a demandas que não foram tomadas pelas autoridades de saúde pública, como a folga remunerada de trabalhadores que chegam em locais sem condições de saúde e segurança, fechamento de todos os prédios por 48 horas para desinfecção, nenhum corte de salários e a formação de comitês de higiene nos locais de trabalho em conjunto com gestores e trabalhadores da saúde.♟