Afeganistão: barbárie e imperialismos

Afeganistão: barbárie e imperialismos

A atabalhoada fuga dos EUA, após uma fragorosa derrota política e militar, está longe de significar o fim da tragédia para o proletariado naquela estrutura de classes chamada Afeganistão. Depois de vinte anos fornecendo armas modernas e assessoria técnica em todas as áreas para um governo local fantoche, tudo desmoronou em onze dias, assim que foi feito o anúncio oficial pelo presidente Biden da saída das forças armadas estadunidenses. Mas para entender os próximos movimentos nesse verdadeiro tabuleiro de xadrez do imperialismo é necessário olhar para o passado.

Um cemitério de impérios?

Geograficamente o Afeganistão sempre esteve encurralado por países de civilizações milenares como Irã (antigo Império Persa), Índia (que somada ao atual Paquistão compôs a Índia Britânica até 1947), China e países que outrora formavam o Império Russo e depois se tornariam membros da União Soviética. Não por acaso, esse país montanhoso e com grandes variações de temperatura já sofreu três grandes investidas imperialistas nos últimos três séculos. Entre 1839 e 1919 o Império Britânico promoveu três invasões conhecidas como Guerras Anglo-Afegãs, entre 1979 e 1989 foi a vez da URSS tentar subjugar os afegãos e, mais recentemente, os EUA e a OTAN vinham ocupando aquele território desde outubro de 2001 (menos de um mês após os atos de 11 de setembro). Atualmente está cercado por três nações com arsenal nuclear (Índia, Paquistão e China) e também pelo Irã, que está em vias de desenvolver essa tecnologia.

Em todas as investidas militares que sofreu, os invasores foram inicialmente bem-sucedidos na ocupação do território, mas as táticas de guerrilha dos clãs armados afegãos foram desgastando lentamente os exércitos agressores até que eles não tiveram outra opção senão ir embora. Contra os britânicos os mujahideen comandaram a resistência e contra os soviéticos já puderam contar com a ajuda de vários países como China, Paquistão, Arábia Saudita e Estados Unidos. Por se tratar de um grupo heterogêneo, uma parte de seus clãs viria a sofrer influências do Paquistão e a se aproximar de Osama Bin Laden que, financiado e orientado pelos EUA, posteriormente formaria a Al Qaeda. Na década de 1990 o país foi palco de guerras civis e testemunhou o surgimento do Talibã, também apoiado pelo Paquistão, que em 1994 contava com 15 mil membros e hoje controla a quase totalidade de seu território, enfrentando resistência apenas de alguns poucos grupos de mujahideens.

Assim como o Vietnã (que já resistiu a ocupações de chineses, mongóis, franceses, japoneses e estadunidenses) o Afeganistão também é chamado de cemitério de impérios, mas isso não deve servir para romantizar toda a destruição de que foram vítimas por séculos e que provocaram sequelas sentidas até hoje, cenário em que a população se encontra sob o jugo de um fundamentalismo islâmico que se impõe como inimigo atroz das expressões artísticas, das liberdades das mulheres e de outras manifestações religiosas.

“Os afegãos são divididos em clãs, sobre os quais os vários chefes exercem uma espécie de supremacia feudal. Seu ódio indomável ao governo e seu amor pela independência individual, por si só, impedem que se tornem uma nação poderosa; mas essa mesma irregularidade e incerteza de ação faz deles vizinhos perigosos, suscetíveis de serem levados pelo vento do capricho, ou de serem instigados por intrigantes políticos, que artisticamente empolgam suas paixões.” — Friedrich Engels

Impérios em transição

Após a assinatura do acordo de paz entre Talibã e EUA, em fevereiro de 2020, teve início a desocupação estadunidense, deixando as forças afegãs de segurança desprotegidas após vinte anos de suporte recebido pelos invasores. Devidamente fortalecidos com as armas, munições, veículos terrestres e aeronaves deixados pelos EUA (estimados em 30 bilhões de dólares), os Talibãs não perderam tempo e já começaram a assassinar implacavelmente quem consideram seus adversários, sendo que em seis meses cerca de 1.500 militares afegãos foram mortos ou feridos. E se engana quem pensa que se resumem a selvagens brutais, expressão medieval em pleno século XXI. Há tempos que sabem se inserir perfeitamente no comércio internacional de drogas (ópio) e desde a queda de Cabul sua perspectiva é a de se tornar rapidamente agente de um ou outro dos imperialismos dominantes (EUA e China). O Talibã sabe que se quiser permanecer no poder e sobreviver a um bloqueio econômico e financeiro total – é o que precisa fazer. Ainda mais agora que irá administrar as reservas minerais afegãs, avaliadas em três trilhões de dólares.

Por trás da ideologia do discurso de que são o “cemitério dos impérios”, o Talibã está consciente de que em termos políticos e econômicos estão desarmados. O fato de o governo chinês ter sido o primeiro a reconhecer o novo regime afegão, com promessas de ajuda econômica em troca de concessões de mineração, não é suficiente para assegurar esse apoio. O Talibã precisa dar garantias geopolíticas estratégicas, como a instalação de bases militares e um apoio firme sob a forma de acordos bilaterais que reforcem as políticas externa e interna da China. De pronto podemos citar o fim da interferência afegã na luta interna que o governo chinês trava contra a minoria muçulmana uighur, na província de Xinjiang e a maior facilidade de escoamento da produção russa de energia para a China e a Índia. Outro exemplo é o alçamento da Turquia à condição de potência mediadora na Ásia Central para se chegar a uma paz duradoura entre o Talibã e seus adversários internos, estabilizando o país para que os negócios possam fluir. Fica evidente em mais uma parte do globo que o imperialismo em decadência (EUA) perde terreno para o imperialismo emergente (China).

As dificuldades reais do imperialismo estadunidense são ocultadas pela ideologia que afirma que Washington está “cansada” de ser a polícia do mundo, que não se leva civilização/democracia a povos bárbaros que não as querem, que se pretende poupar a vida de seus próprios militares e que financiar operações da OTAN está muito caro. Para coroar a inversão do real, o presidente Biden afirma que os objetivos dos EUA foram atingidos no Afeganistão. Na verdade foram derrotados, deixando um saldo de 2.000 de seus compatriotas militares mortos e um gasto de 20 trilhões de dólares, sem disso extrair qualquer vantagem imperialista, a não ser para sua indústria bélica. O argumento de que a retirada do Afeganistão é uma tática para se concentrar nos chineses também oculta que o Pentágono não possui mais a força de algumas décadas atrás e o balanço estadunidense de pagamentos com países estrangeiros é altamente negativo. Some-se a isso a crise causada pelas baixas taxas de lucro, com pouco valor em capital investido produtivamente, o que estimula a especulação e encolhe a economia real. Isto significa que continuar a ser o principal país imperialista do mundo está ficando insustentável e, diante dessa realidade, o melhor a fazer é sair de autênticos “atoleiros” que somente podem levar a derrotas (Iraque, Síria e Afeganistão) para se concentrar em objetivos mais limitados e estrategicamente mais importantes.

Ciente disso, no dia 03 deste mês, a China parece já ter ocupado e reativado a base aérea de Bagram, abandonada pelos EUA em julho, embora tanto o Talibã como o governo chinês neguem tal intenção. Além das riquezas minerais, o Afeganistão é territorialmente estratégico para o poder político de Pequim, que está se aliando ao Paquistão no enfrentamento à Índia na região da Caxemira. Após os confrontos armados recentes essa região já conta com cerca de 120 mil soldados indianos e chineses em constante tensão fronteiriça. Também é importante ressaltar que atualmente EUA, Inglaterra, Índia, Japão e Austrália formam uma aliança que visa frear o avanço chinês sobre seu mar do sul.

“Na estratégia, assim como na política e pelas mesmas óbvias razões, não existe o espaço vazio: como no jogo oriental Go, o espaço é o objeto da disputa. Assim, sem discursos inflamados, movimentos grotescos, nem gestos histriônicos, a China seguiu seus designios estratégicos de longo prazo (…). Nesse mesmo tempo, os Estados Unidos feria de morte o Estado Iraquiano seu mais importante aliado na luta contra o terrorismo islâmico e pisoteava uma cultura milenar, para deixar no seu lugar a devastação, a desordem política e social, a miséria e, sobretudo, o ódio pelo invasor; embrenhou-se numa improvável guerra no Afeganistão contra os outrora “guerreiros da liberdade” e agora meros “terroristas” que eles próprios armaram, financiaram e treinaram contra as tropas da antiga União Soviética.” — Héctor Luis Saint-Pierre

A barbárie como normalidade

Diante de todo esse cenário, vale destacar a seletividade hipócrita da mídia hegemônica ocidental que, ante o caos provocado por uma derrota acachapante do invasor, choraram “lágrimas de crocodilo” emitindo declarações apelativas frente a imagem de afegãos colaboradores tentando fugir desesperadamente do que os espera. Jamais se sentiram comovidos, por exemplo, com as atrocidades da Arábia Saudita sobre a população do Iêmen ou as de Israel sobre os palestinos. Criminosamente, silenciando no primeiro caso e equiparando agressor e agredido no segundo.

Neste momento, uma resistência auto-organizada dos explorados é um cenário improvável diante de sua ausência de protagonismo na cena pública da política afegã. Assim, o que o futuro parece lhes reservar é seguir entre a brutalidade obscurantista do nacionalismo tribal Talibã, as tragédias do imperialismo estadunidense e o totalitarismo do capitalismo de Estado imperialista chinês.♟