É comum nos depararmos com a insatisfação de quem atua nos movimentos sociais frente a certo “imobilismo” da nossa classe. Para compreender esse processo torna-se obrigatório entendermos que o trabalho, no capitalismo, é trabalho alienado. O proletariado não decide no que trabalhar, não domina a totalidade do processo no qual trabalha e o resultado final não lhe pertence.
Assim, podemos entender que parcela do proletariado sem a percepção de sua condição de classe não compreenda os fatores sociais, políticos e culturais que condicionam sua vida e nem consiga decifrar os impulsos que o levam a agir de uma determinada maneira. Pela definição de alienação, podemos dizer que as relações do dia-a-dia chegam aos nossos olhos como a imagem refletida no espelho. Aparentemente, o que se vê parece ser a fiel reprodução do cotidiano vivido, quando, na verdade, tudo não passa de um reflexo que inverte as relações sociais. Mesmo quando capta o que se esconde por trás das aparências, por vezes o comportamento do proletariado expressa uma certa paralisia política que o impede, na prática, de realizar aquilo que historicamente lhe cabe fazer.
Neste Boletim, buscamos discutir alguns dos mecanismos materiais e psicológicos pelos quais a exploração do sofrimento psíquico se torna fator determinante para elevar a produtividade e os lucros empresariais, ao mesmo tempo em que atua no sentido de minar a capacidade organizativa do proletariado.
Classe desunida, classe assediada
Nos últimos 30/40 anos as transformações no mundo do trabalho conferiram à figura do indivíduo uma posição de destaque que jamais havia tido, sendo guindado à condição de responsável exclusivo pelo seu “sucesso” ou “fracasso”. Passou-se a acreditar que o esforço pessoal é a única arma capaz de assegurar sua empregabilidade e afugentar o medo de concorrer com os demais. Desta forma, o ‘eu’ tomou o lugar do ‘nós’ na vida diária e começou a derreter o sentido das preocupações coletivas que haviam sustentado longos processos de luta nas décadas anteriores. Ao se fechar em si mesmo, o proletariado vai esgarçando o tecido social que o une enquanto classe, paulatinamente deixa de perceber que a injustiça contra um igual é uma ameaça que paira sobre as cabeças de todos, naturalizando as práticas mais cruéis do capitalismo. Não é exagero afirmar que qualquer relação de trabalho sob o capitalismo é assediosa. A possibilidade da perda do emprego a qualquer momento (facilitada pelo enorme exército de reserva de força de trabalho existente), a pressão para atingir metas muitas vezes inalcançáveis, coerções variadas e o controle excessivo fazem parte da essência capitalista, sendo, portanto, legal e eticamente aceitáveis. No entanto, tais práticas atingem o proletariado, fragilizando-o tanto individual como coletivamente. Tomemos por exemplo o anúncio feito pela empresa Ford de encerramento de suas atividades na América Latina, em janeiro deste ano; a reestruturação do Banco do Brasil; a demissão de inúmeros professores substituídos por aulas gravadas; o sem número de patrões que ignoram os riscos da pandemia e obrigam seus empregados a realizarem normalmente suas atividades, sob pena de demissão, mesmo quando apresentam algum sintoma da doença; além da desregulação crescente das relações de trabalho; as situações de trabalho análogo à escravidão, etc. Ter o fantasma do desemprego rondando permanentemente a vida, da mesma forma que a falta de perspectivas para assegurar seu sustento diante dos índices crescentes de informalidade, deveria ser considerado assédio, mas é perfeitamente consentido e estimulado no mundo do capital. Assim, aos poucos um ingrediente fundamental para a nossa classe vai sendo degradado – a solidariedade, deixando a porta aberta para toda sorte de abusos.
“Precisamos delinear claramente a forma pela qual os fatores internos e externos às empresas se articulam para introduzir tensões desagregadoras no seio do trabalhador coletivo e realizar a façanha de leva-lo a aumentar a produtividade e os lucros mesmo quando a adesão ativa à lógica e aos projetos capitalistas é paga com a perda da integridade fisica e mental.” — Emílio Genari
Em algumas ocasiões os mecanismos garantidores da extração de mais-valia assumem tonalidades mais fortes – configurando o que convencionou-se chamar de “assédio moral”; uma forma de violência de classe exercida na organização do trabalho contra a subjetividade do proletariado, específica das relações sociais de produção capitalistas, especialmente em sua fase toyotista. Trata-se de uma forma de dominação como momento inseparável do processo de exploração e controle do capital sobre o trabalho. O problema aqui é que a grande maioria das abordagens feitas acerca da situação (quer seja pelos sindicatos ou pelos departamentos de gestão de pessoas das empresas) se restringe ao campo jurídico e/ou psicológico, ignorando que os locais de produção são um campo de batalha onde se desenvolve a oposição entre trabalho e capital – neste sentido invisibilizam e despolitizam relações de classe, buscando individualizar tais eventos. No entanto, quando o proletariado é ferido nesta guerra, as consequências (individuais e coletivas) se alastram para muito além do ambiente de trabalho. A luta de classes no local de trabalho é permanente. O proletariado é obrigado a resistir cotidianamente às pressões do capital sob pena de um esgotamento total, mesmo fora de períodos de greves e de outros conflitos abertos, onde cada fábrica, cada empresa, cada repartição é cenário de uma guerra surda, de constantes batalhas permeadas por pressões e contra-ofensivas. É precisamente desta guerra que emerge o assédio como mais uma das expressões da violência dominante.
“A prática do assédio moral não é nova: tem a mesma idade do trabalho realizado para outrem em troca de pagamentos que possibilitem a própria sobrevivência. Chefes e patrões sempre perseguiram trabalhadores e trabalhadoras ora de forma aberta, ora disfarçada, com medidas autoritárias ou com tapinhas nas costas, gritarias ou repreensões paternalistas. Em todos os casos, o objetivo dos constrangimentos criados era sempre o mesmo: extrair mais trabalho, mais produção, mais lucro, enfim, melhorar as possibilidades e os ritmos da acumulação.” — Emilio Genari
Assédio: exploração personalizada
Embora o debate sobre “assédio moral” seja relativamente recente, não se trata de uma prática isolada ou excepcional, mas de um processo de violência inserido nos aparatos, nas estruturas e nas políticas organizacionais ou gestoriais, quer nas empresas estatais ou privadas, cujo propósito é exercer o gerenciamento do trabalho e do grupo, visando produtividade e controle hierárquico. Em regra, o objetivo não é atingir uma pessoa em especial, mas sim controlar todo o grupo indiscriminadamente. Alguns exemplos de práticas de assédio são: gestão por estresse, por injúria e por medo, exposições constrangedoras de resultados, competição por metas, premiações negativas, ameaças, cobranças exageradas, dentre outras. Tais formas de assédio estão naturalizadas e tendem a passar despercebidas, sendo entretanto a base fundamental para suas variantes (assédio moral e/ou sexual individualizado). Neste contexto, recusar-se a executar uma ordem que considera injusta, responder a um comentário preconceituoso, participar de uma movimentação por melhoria nas condições de trabalho ou mesmo uma greve, denunciar esquemas ilegais, entre outras tantas situações podem ser “motivos” para que se iniciem as ações de assédio explícito contra um determinado proletário. A partir daí se inicia um processo de isolamento e estigmatização. O capital consegue realizar um corte profundo na carne da classe ao desenvolver técnicas de aniquilamento individual que neutralizam aquilo que a classe tem como uma de suas principais armas: a solidariedade, princípio social de classe sem o qual não há organização e luta possível. Tal situação gera um “medo de contaminação” que isola o assediado. Tem-se como consequência que os demais temam que, se mantiverem proximidade do assediado, possam vir a ser confundidos com este e considerados, igualmente, como potenciais perturbadores da ordem instaurada. A individualização da dor facilita à empresa a tarefa de apagar os vestígios das doenças profissionais e dos acidentes e, para isso, costuma contar com a conivência dos profissionais da saúde ocupacional e dos sindicatos.
Um trabalhador doente não luta. Especialmente se adoecido psicologicamente, com uma série de capacidades subjetivas afetadas, tais como sua percepção, motivação, consciência, razão, clareza, confiança, autoestima, entre outros aspectos que também afetam seu vigor, sua disposição e saúde físicas. Enfim, as psicopatologias decorrentes da violência laboral, a que se convencionou chamar de “assédio moral”, afetam diretamente a condição psíquica e a resistência corporal necessária para enfrentar a crueza da luta de classes. Os capitalistas têm em suas mãos mais uma arma contra o proletariado: quando prender lutadores sociais não surtir mais efeito – ou quando isto significar ferir a “legitimidade jurídica”, cujo aparato cumpre um papel ideológico de “garantidor de direitos democráticos” –, quando cooptar não for mais possível, o “assédio moral” surge como mais um instrumento eficaz de fragmentação, de coerção subjetiva mais ou menos velada de indivíduos e pequenos grupos no interior do processo cotidiano de trabalho. Eventualmente pode ocorrer o chamado assédio horizontal (entre proletários), normalmente apresentado como uma “perseguição pessoal” entre colegas, configura o fenômeno capitalista da concorrência, que se impõe como lei social não apenas entre os capitalistas, mas no interior do proletariado, impelindo trabalhadoras e trabalhadores muitas vezes a uma luta encarniçada pela sobrevivência no mundo do trabalho. Ou seja, enquanto o proletariado compete entre si, encontra-se fragmentado como classe, logo, não se organiza para o enfrentamento contra o capital.
O processo judicial, forma de litígio típica do Estado capitalista, e o acolhimento psicológico por mais que seja necessário como tentativa de reversão do quadro de adoecimento, estão longe de serem soluções. Continuam a reproduzir a individualização da luta e a consequente fragmentação da classe, além de movimentar toda uma indústria jurídica, médica, psicoterápica e farmacêutica.
É imprescindível o desenvolvimento da auto-organização nos locais de trabalho, estatais e privados, no sentido de criar redes de solidariedade, além de táticas e estratégias de enfrentamento e resistência diretas contra os gestores do capital, desnaturalizando as práticas de assédio e fortalecendo as lutas anticapitalistas de forma permanente, até sua derrocada final. ♟