Bolsas e auxílios: precarização e projetos de poder

Bolsas e auxílios: precarização e projetos de poder

Compreender o papel do Estado enquanto instituição repressora das revoltas das classes dominadas contra as dominantes e reconhecê-lo como elemento fundamental da manutenção da exploração capitalista é um preceito básico da luta anticapitalista. Porém, nem todas as vezes seu papel moderador, importante para recuperação de crises do Capital e de suporte nos momentos de superexploração do proletariado por parte do mercado é reconhecido. Nesse contexto, uma das estratégias criadas pelo Estado para permitir a reprodução da vida do proletariado foi a Assistência Social. É através dela que parte do que é expropriado diariamente dos assalariados é devolvido a eles na forma de “auxílios” e “bolsas” nos seus mais variados formatos. Tais políticas direcionadas às camadas socialmente sucumbidas do proletariado são o máximo a que os gestores e os burgueses se propõem para mitigar os efeitos sociais mais nefastos do capitalismo, a fim de não admitir a responsabilidade do capital pela pobreza, muito menos questionar as necessidades de acumulação inerentes ao seu modus operandi.

No mundo todo a burguesia desenvolveu as formas mais variadas de devolver, parcialmente, ao proletariado o fruto da sua própria força de trabalho. Geralmente essa devolução se dá através de um auxílio financeiro, de acordo com regras bem definidas, mas também pode ocorrer na forma de serviços gratuitos universais ou parciais. Embora a Previdência Social também seja uma forma de o atual sistema devolver a uma parcela do proletariado migalhas do que lhe é extraído, em sua origem as sociedades de ajuda mútua baseavam-se na necessidade concreta da solidariedade de classe. Posteriormente o Estado a transformou em um “privilégio” e permitiu que o capital a explorasse como mercadoria. A Assistência Social, por sua vez, nasce das iniciativas assistencialistas de caridade da burguesia e instituições filantrópicas ligadas às igrejas que, mais tarde, são incorporadas ao Estado. É fundamental identificar que essa assistência retorna em quantidade muito inferior ao que é usurpado diariamente do proletariado para gerar mais-valia à mesma burguesia que controla o seu Estado.

É um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder. E nós devemos colocar, se não um ponto final, uma transição a projetos como o Bolsa Família.” — Jair Messias Bolsonaro, 2011

A versão brasileira de “renda básica” com maior abrangência foi iniciada pelo governo FHC, em 2001, com o Bolsa Escola e o Bolsa Alimentação. Mas foi o governo social-liberal de Lula o mais eficaz na criação de condições para o progresso do capital no país. A ideologia em torno do Bolsa Família o apresenta como um exemplo de distribuição de renda, fator de aquecimento do mercado interno e indutor de pequenos negócios. É como se estivéssemos celebrando a conquista do capitalismo para todos. É importante considerar que, de acordo com o estabelecido na lei, o montante é entregue preferencialmente às mulheres, considerando que elas administram melhor do que os homens o dinheiro em benefício de toda a família. Ou seja, acontece uma terceirização das competências do Estado para as mulheres das famílias contempladas que passam a assumir a responsabilidade de garantir que seus filhos tenham condições mínimas de estudo e saúde para que continuem recebendo a Bolsa. Além disso, deve-se levar em consideração que o valor do Bolsa Família se dá a partir de um cálculo que visa mudar apenas a categoria estatística e não a vida material dos beneficiários de forma substancial. Ou seja, superar a extrema pobreza (R$89,00 per capita de acordo com o IBGE) para a pobreza (R$178,00 per capita), cumprindo uma “Meta do Milênio” da ONU.

Os atendidos pelo programa são as famílias extremamente pobres, ameaçadas de déficit nutricional e com baixa ou nenhuma escolaridade, ou seja, que não estão à altura das necessidades do mercado de trabalho capitalista. Tal política de “transferência” de renda às famílias desses bolsões de pobreza projeta que, ao final de um período, elas terão adquirido condições de se “emancipar” do auxílio, seja através de um emprego formal ou criando o seu próprio negócio, com crédito a taxas de juros especiais. Ao mesmo tempo, o crescente processo intensificação dos regimes de trabalho, que exigem maior nível de instrução e de exploração, com consequente redução do quadro de funcionários, resulta no descarte crescente de vendedores de força de trabalho, lançados na precariedade social e que sequer servem ao Capital como exército de reserva. Este programa se manteve praticamente o mesmo desde então — com algumas regras adicionais como a exigência de escolarizar os filhos, vacinação e acompanhamento médico — até ser assumido pelo governo Bolsonaro. A nova proposta visa expandir o número de beneficiados e aumentar o valor do auxílio, além de outras facilidades em relação ao programa anterior (como a reinserção automática no programa caso a beneficiada tenha sido demitida do emprego meses depois de parar de receber a Bolsa, por exemplo).

Os diferentes matizes políticos do Capital — PSDB, PT e Bolsonaro — que apoiaram ou instituíram tais auxílios vivem se digladiando no teatro político. Mas é interessante observar que mesmo a extrema direita, que acusa essas medidas assistencialistas como “comunistas” quando na oposição, agora no poder não só toma para si esses programas como os incrementa. E apesar da aparente contradição, a esquerda e a direita do Capital são consonantes na ideologia de que se trata de uma ajuda de um Estado benevolente. Diante desse cenário, tais movimentos de Bolsonaro podem parecer um contrassenso em relação à figura contrária ao “Estado Democrático de Direito” bradada pela esquerda do capital. Tal pensamento ignora (ou omite) que essa é a essência da democracia e que ela aceita oscilações no perfil dos seus governos contanto que eles sirvam aos interesses dos mercados. Bolsonaro não acabaria com um modelo político que vem servindo a seus filhos e a si próprio por mais de 30 anos. Essa experiência lhe permite fazer escolhas aparentemente contraditórias para se manter no poder, a exemplo da instituição e do prolongamento do “Auxílio Emergencial”. Através dele fica claro que o Estado reconhece a situação econômica calamitosa do proletariado e o institui, por iniciativa própria, como medida preventiva temendo uma eventual revolta por parte daqueles que já não têm mais nada a perder.

Eu queria provar que o pobre não era problema, eu queria provar que o pobre era a solução. E aí eu resolvi colocar o pobre no orçamento. A gente percebeu que o povo pobre é o maior ativo que um país pode ter em qualquer parte do mundo. Na hora que ele entra na economia, na hora que ele vira um consumidor, mesmo que seja uma coisa pequena, quem vai ganhar dinheiro é a classe média, quem vai ganhar dinheiro é o comerciante, quem vai ganhar dinheiro é o empresário.” — Luiz Inácio Lula da Silva, 2020

Na atual condição de investigados, Bolsonaro e família necessitam repor o Auxílio Emergencial através de um programa de renda porque, caso não o façam, a gestão presidencial perderá popularidade e a pouca estabilidade política que possui diante de tantas acusações. Ou seja, tal arcabouço é defendido por sensibilidade em relação ao voto e à primazia da permanência no poder. Isso significa assumir a necessidade de um programa social, uma vez que o auxílio emergencial foi responsável por um apoio político percentual maior do que aquele que os setores reacionários puderam oferecer. Caso não seja o programa social do Bolsonaro, que fique o do Lula. Assim, o Renda Brasil, Renda Cidadã, etc., não é parte de um projeto de governo progressista, mas uma licença às medidas do capital financeiro de Paulo Guedes para capitalizar apoio. E foi visando a manutenção do poder que Bolsonaro criou o maior programa de distribuição de renda já realizado no Brasil, o que é prova cabal de que o PT não fez nada que um governo de direita, minimamente esclarecido sobre o funcionamento da Democracia, não pudesse fazer em termos sociais. Mas é evidente que a esquerda do capital não reconhecerá tais semelhanças e seguirá afirmando que Bolsonaro é incompatível com a democracia.

Diante desse cenário, enquanto a transformação global da sociedade ainda não esteja no horizonte, promovendo a garantia da abundância material para todos, não se pode menosprezar o impacto desse montante na vida do proletariado precarizado. A defesa da continuidade desse auxílio é uma obviedade, mas é preciso apontar que o proletariado só está nessa situação em pleno século XXI após décadas de perdas de suas conquistas históricas dos séculos XIX e XX (salário mínimo, jornada de 8 horas), devido às precarizações que ampliam a jornada e reduzem a própria valorização da força de trabalho (terceirização, uberização, pejotização, jornadas por hora/produção, banco de horas, etc.) O proletariado não pode viver de migalhas, de direita ou esquerda, mas sim de um novo movimento de lutas que não apenas gere conquistas para a integralidade da classe, mas que também a ensine a gerir a sua sociedade do futuro.♟