Capital, Estado, Saúde e a imunização obrigatória

Capital, Estado, Saúde e a imunização obrigatória

Para o Capital, planejar em saúde nada mais é que “administrar recursos escassos”. Apesar de aparecer de forma mais elaborada na academia, ao retirar os discursos rebuscados que floreiam a ideologia é isso que sobra. Por trás do pretenso treinamento da habilidade em melhorar indicadores de saúde está a orientação de que essa melhora não dependa de maiores investimentos. Para alcançar esse objetivo as classes dominantes têm lançado mão de diversos recursos, entre eles os que têm mais destaque desde o mercantilismo são a polícia médica e a construção vertical de políticas de saúde.

A história da polícia médica

O termo “polícia médica” foi empregado pela primeira vez no final do século XVIII, dando início a um novo estágio de desenvolvimento das políticas de saúde. Ela era defendida como a melhor forma de enfrentar uma epidemia, juntamente com o aumento do número de hospitais. Na prática significava um programa de ação social voltado para a saúde que visava o aumento do poder do Estado, através da criação de várias leis, ao invés da melhoria das condições de vida da população. Assim, a polícia médica nasceu junto ao despotismo esclarecido prussiano, cuja ideologia defendia o Estado como um contrato social no qual as pessoas renunciam à sua liberdade. Dentro desse conceito de fortalecimento do Estado, o cuidado com a saúde pública tinha a especial tarefa de aumento populacional para finalidades militares. Hoje em dia, permanece com a tarefa de aumentar um outro exército: o industrial de reserva do capital.

Apesar de concordar que o Estado deveria intervir na liberdade pessoal do indivíduo “pelo interesse da saúde”, como em casos de doenças transmissíveis e mentais, a medicina social nasceu como oposição democrática à polícia médica. Esse movimento entendia que a “saúde do povo” é responsabilidade social e cobrava do Estado o dever de garantir condições econômicas e sociais. Justamente aí ficavam os seus limites: queriam resolver esse problema dentro da esfera estatal. Consequentemente, não havia uma crítica anticapitalista.

Políticas de saúde no capitalismo: produção e reprodução da vida com o papel regulador do Estado

Embora ações de impacto na saúde pública já existissem nos aquedutos maias com filtragem de água e na Grécia antiga, assim como o seu estudo por parte de Hipócrates, as políticas de saúde como conhecemos hoje surgiram no embrião do capitalismo. Por isso mesmo é tão difícil pensá-las fora do contexto capitalista.

As políticas de saúde devem garantir a produção e reprodução da vida em sociedade e, em última análise, garantir a reprodução do capital. O Estado, nesse aspecto, atua tanto como regulador, ao tentar neutralizar a exploração desenfreada contra o corpo e a mente do proletário, tanto como assistente, ao fornecer os cuidados de saúde após o adoecimento, que o mísero salário não garante. É com esse contexto em mente que se deve fazer uma leitura das políticas de saúde implementadas contra a Pandemia da COVID-19.

“Se a doença é uma expressão da vida individual sob condições desfavoráveis, a epidemia deve ser indicativo de distúrbios em maior escala da vida da massa.”
Rudolf Virchow

O processo de tomada de decisão nas políticas de saúde do Capital

Não seria de se esperar outra conduta para o enfrentamento da Pandemia da COVID-19 que não a resposta padrão do capitalismo às suas crises: recorrer ao Estado. Por mais que a social-democracia tenha criado ferramentas que tentam descentralizar e reduzir a autoridade estatal nas políticas de saúde, como por exemplo os Conselhos Locais de Saúde no Brasil, o problema dessas ferramentas está justamente em serem submetidas ao Estado. Esses conselhos são apenas consultivos e quem pode deliberar é a autoridade de saúde, sendo a sua maior instância o Ministro da Saúde. A nível internacional temos a Organização Mundial da Saúde, que nada mais é que uma reunião de cúpula dos Ministros de Saúde de diversos países. Todas essas autoridades ficam sob o guarda-chuva do capital.

No âmbito da saúde pública, é comum o discurso da esquerda do Capital sobre ouvir as “comunidades” e, por vezes, até defendem que elas deliberem. Porém, novamente, tudo deve ficar limitado a alguma instância estatal segundo essa “esquerda”. Desde o início da Pandemia quem ditou ao proletariado como enfrentá-la foram as autoridades de saúde que, em alguns casos, não tinham sequer capacidade técnica. Mais importante era se submeter ao capital e manter a produção. Foram esses gestores, que nunca estiveram na “linha de frente”, seja do enfrentamento da Covid, seja na produção do capital, que ditaram os rumos. O proletariado, que vivenciou o alto risco de contaminação para garantir a sua subsistência diária, sequer foi ouvido e nem se fez ouvir.

Polícia médica e as imunizações obrigatórias na Pandemia da COVID-19

Seja a partir da esquerda ou da direita do capital, as ações da polícia médica sempre foram centradas na intervenção do Estado na liberdade individual. E da mesma forma que a esquerda, quando uma política não é do interesse da direita do Capital ela também se manifesta, de forma oportunista, contrária à intervenção do Estado, como no caso da imunização obrigatória. Ambos divergem somente sobre como e quando o Estado deve intervir.

Reconhecendo essa hipocrisia, parece difícil entender por que setores da direita se levantam de forma tão ativa contra a imunização obrigatória: não é uma luta contra a intervenção do Estado. Resta apenas a ignorância alimentada pela religião, médicos vaidosos em busca de fama e políticos eleitoreiros em busca de poder. A limitação do conhecimento, necessária à manutenção das ideologias capitalistas, tem nos anti-vacinas uma das consequências. Essas paranoias conspiracionistas que até então eram restritas a grupelhos sem qualquer relevância, muito convenientemente nada falam sobre os demais produtos das mesmas indústrias farmacêuticas e químicas, como remédios e agrotóxicos.

Fica fácil perceber, portanto, quem financia, apesar dos motivos serem mais complexos. As descobertas da CPI da Pandemia são emblemáticas ao mostrar os lucros absurdos dos fabricantes de ivermectina (opositores às vacinas).

Como as políticas de saúde mudam a vida do proletariado Em um sistema em que o conhecimento científico é transformado em mercadoria e segredo industrial, o proletariado, por não ter controle sobre o processo de produção nem sobre o saber científico, fica refém da indústria farmacêutica, das autoridades em saúde e da assistência de médicos. No contexto da Pandemia, quando a polícia médica (apesar de não usar esse nome) volta ao cotidiano de forma flagrante, o proletariado é confrontado diariamente com essa alienação. Para garantir a vida, se vê obrigado a seguir regras que não sabe direito de onde vêm. Com isso, acaba sendo doutrinado tanto na ideologia como nas relações sociais liberais: respeito à hierarquia e às autoridades, aceitação da divisão entre trabalho intelectual e braçal, obediência ao conhecimento médico (por mais contraditório que tenha se manifestado durante a Pandemia), enfim, não discutir.

“De maneira geral, pode-se dizer que, diferentemente da medicina urbana francesa e da medicina de Estado da Alemanha do século XVIII, aparece, no século XIX e sobretudo na Inglaterra, uma medicina que é essencialmente um controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas.” — Michel Foucault

Políticas de saúde do ponto de vista proletário

A história tem demonstrado que o proletariado só consegue ser verdadeiramente autônomo quando atua fora da esfera estatal, alheio a quaisquer das suas instituições. O mesmo vale para as políticas de saúde, incluindo aí as ações para enfrentamento de uma pandemia. Nesse sentido, a análise da conjuntura e do momento histórico, são fundamentais. De acordo com a força do proletariado, nem sempre é possível fazer outras ações que não as recomendadas pelas autoridades do capital para que a classe se mantenha viva ou, ainda, que tenha as menores perdas possíveis. Entretanto, não podemos deixar de questionar as orientações, portarias e leis emitidas pelas autoridades de saúde, pois elas expressam o entendimento burguês e gestorial, inconciliável com os interesses do proletariado.

E por mais que aceitar a imunização obrigatória pareça ser uma decisão semelhante do ponto de vista proletário ou burguês, o processo de construção dessa decisão é antagônico. É aqui que se percebe o problema de utilizar qualquer meio para chegar a um fim: o modo autoritário, ideológico, que gera paranoia, desconfiança, teorias da conspiração, negação do conhecimento científico e até lutas sociais fúteis; versus o modo da autonomia, pedagógico, que visa a construção de uma verdadeira consciência coletiva, que consiga proporcionar ao proletariado o poder de decisão sobre o futuro de sua própria saúde ao invés de apenas repetir frases soltas e racionalidade irreflexiva.♟