Chile 1970-73: aprender com a história

Chile 1970-73: aprender com a história

11 de setembro marca os 50 anos do golpe que derrubou o governo da Unidade Popular (UP) – presidido por Salvador Allende – instalando uma das mais sangrentas ditaduras da América do Sul. O que para muitos pode ser uma data para recomendar “moderação” para governar no capitalismo, para a parcela do proletariado com consciência comunista são outras as lições e ensinamentos a reter com essa riquíssima experiência.

O que foi a chamada “via chilena para o socialismo”?

A “Via Chilena para o socialismo em democracia, pluralismo e liberdade” foi assim chamada pela esquerda do capital para expressar a vitória eleitoral em 1970 de uma coligação inicial de 6 partidos – na qual os maiores eram o PS (Partido Socialista) e o PC (Partido Comunista do Chile). Esta coligação recebeu o nome de Unidade Popular (UP), e possibilitou à esquerda reformista assumir o controle do executivo no Chile e implementar um programa de capitalismo de Estado pela via pacífica e por dentro da legalidade democrática.

Na oposição de direita ao governo, estavam: a) Partido Nacional (PN) – representante das oligarquias financeira, industrial e latifundiária, e o bloco geopolítico dos EUA; b) Democracia Cristã (DC) – partido policlassista com base nos centros econômicos e industriais mais desenvolvidos, vinculada à nova burguesia industrial financeira e comercial, e c) Frente Nacionalista “Pátria e Liberdade” (PyL) – representante do neofascismo defendendo abertamente uma contrarevolução para implantar mais deveres, obrigações e sacrifícios aos cidadãos. PyL pretendia substituir a democracia e os partidos por um sistema corporativo e constituir uma grande Assembleia Corporativa que expressasse a vontade majoritária da nação. Durante o Governo da UP, PyL cometeu todo tipo de atentados, praticando a sabotagem e o terrorismo. Considerado fora da lei pelo governo, passa à clandestinidade. Defenderam abertamente o golpe, e se colocavam como a única força política que expressava clareza e ordem, em uma conjuntura de confusão e bagunça.

À esquerda e fora do governo, se destacou o Movimento de Esquerda Revolucionário (MIR). Fundado em 1964 e na clandestinidade desde 1969, não acreditava no legalismo e no pacifismo da UP embora tenha considerado a sua vitória positiva para o proletariado por controlar o governo e neutralizar o parlamento. O MIR cresceu bastante durante os 3 anos do governo da UP por sua capacidade de construir um Sistema de Instituições Intermediárias (SInt) para organizar a totalidade dos explorados: movimento camponês revolucionário (MCR), Frente de Trabalhadores Revolucionários (FTR), Movimento Universitário de Esquerda (MUT), Frente de Estudantes Revolucionários (FER), Frente de Professores Revolucionários (FPR) e Frente de Soldados e Militares. Esse SInt organizou 5.000 pessoas com capacidade de mobilização real de outras 50.000. Na tentativa de atraí-lo para o governo, o Presidente Allende escolheu sua guarda pessoal entre a juventude do MIR por sua qualidade provada em serviços de espionagem. Além do MIR, outras forças políticas menos importantes foram: Movimento Revolucionário Manuel Rodrigues (MR2), Vanguarda Organizada do Povo (VOP) e o Partido Comunista Revolucionário (PCR) de orientação maoísta.

“Somos partidários do avanço do processo revolucionário dentro dos limites legais atuais, a melhorar lentamente, e somos firmemente pela participação a classe operária na gestão governamental. […] A dierção do PC prevê um longo período de lutas por reformas no interior do capitalismo e do Estado legal burgês através da ação parlamentar, para chegar progressivamente ao socialismo.” — Luis Corvalán (Sec. Geral do PC Chile à época)

A luta de classes se torna nítida e feroz

Aproveitando-se de relativa perplexidade inicial da burguesia, o governo implementou as três grandes metas de seu programa econômico em menos de dois anos, o qual previa: a) nacionalização das riquezas naturais básicas (ferro, salitre e cobre) onde as principais empresas exploradoras foram expropriadas sem indenização; b) extinção do latifúndio, com a expropriação total de todas as propriedades rurais acima de 80 hectares – que era o que as leis chilenas à época definiam como latifúndio, e c) criação da Área de Propriedade Social (APS) que englobava os grandes monopólios mineiros, industriais, financeiros, de distribuição, e as chamadas “empresas estratégicas” (têxteis, metalúrgicas, petroquímicas e de alimentos básicos). Assumiu ainda o controle dos bancos privados, nacionais e estrangeiros, aumentando a participação do Estado para 96% do crédito bancário.

Por um lado, tais medidas fizeram com que o Chile, no segundo semestre de 1971, colocasse em funcionamento toda a sua capacidade produtiva, com reflexos imediatos na melhoria das condições de vida do proletariado, expresso na vitória do governo (UP) nas eleições municipais de abril de 1971, na qual saltou de 36,3% (percentual de votação da UP em 1970) para 49,75% dos votos, enquanto o centro e a direita somados (DC+PN) recuaram de 62,7% para 48,07% nos mesmos pleitos. Por outro lado, a burguesia assimilou perfeitamente a profundidade de tais medidas e se preparou para o confronto em todos os níveis. No plano político, a DC caminhou para uma aliança com o PN fechando a via parlamentar para a aprovação de projetos do governo. Essa aliança aprovou em julho de 1972 – com alguns votos da UP – uma lei de controle de armas que permitiu às Forças Armadas invadir locais de trabalho, estudo, moradia e até cemitérios. Externamente, os EUA prepararam a desarticulação econômica do Chile que resultou no lockout dos caminhoneiros em outubro de 1972, enquanto PyL aumentou suas ações terroristas (assassinatos e bombas). A burguesia demonstrava saber combinar a atuação legal com a ilegal.

“Falamos de duas estratégias no seio da esquerda quanto à concepção do processo de transformação do Estado, bem como à significação o poder popular […] Uma destas estratégias se apresenta de modo coerente a partir do momento que a linha PC se impõe no seio do governo. A outra, esboçada nos documentos do PS e do MIR apenas assume o caráter de uma estratégia alternativa, a partir do momento em que o desenvolvimento do movimento toma a iniciativa de certas dessas propostas e obriga os setores revolucionários, no interior e exterior da UP, a desenvolver com mais coerência, tanto na prática como na teoria, a significação esta estratégia. […] Contudo, os partidos e os setores revolucionários não estão à altura das exigências do movimento de massas e são, várias vezes, ultrapassados por este.” — Angélica Silva e Patricia Santa Lúcia

Surge o proletariado na cena pública da política

Diante da ofensiva da burguesia, a UP fica paralisada e tenta se colocar entre o proletariado e a burguesia. É quando surge o chamado “poder popular”. Inicialmente como forma de resposta dos proletários em apoio às medidas do governo que eram obstaculizadas pela burguesia ou pela burocracia estatal. Assim, surgem as Juntas de Abastecimento e Preços (JAP) para controlar a distribuição e o consumo; os “Comandos Comunais” para cuidar dos problemas nos bairros (água, energia elétrica, etc.); “Conselhos Camponeses” para tratar das exigências da reforma agrária; “Comitês de Vigilância da Produção”, “Comitês de Proteção” e “Conselhos de Administração” nas empresas e finalmente, a partir de outubro de 1972, articulando tudo isso e para coordenar a defesa do proletariado industrial nas áreas urbanas, e sem ilusões com o governo, surgem os “Cordões Industriais”- embrião da forma institucional do comunismo. Vale destacar que todas estas formas institucionais surgiram e se desenvolveram por fora de sindicatos e da CUT chilena. A maioria da UP desconfiava de tal processo, pois escapava de seu controle, e o rotulava como manifestação de “esquerdismo”.

Assim, ficaram nítidos os três campos de classe: proletariado (poder popular), burguesia (oposição) e gestores (governo). Os últimos meses do governo apresentaram uma UP dividida entre apoiar a iniciativa proletária que ultrapassava o governo na prática e superava revolucionariamente o capitalismo de Estado e o Regime Democrático (PS setor Altamirano e, externamente à UP, o MIR) ou persistir em concessões à DC e aos militares golpistas para tentar um acordo impossível (PC e PS setor Allende). Vale lembrar que – segundo um dos únicos generais fiéis ao governo – até 60 dias antes do golpe a UP tinha condições de armar os Cordões Industriais desde que rompesse com a legalidade antes que a burguesia o fizesse.

Assim, no dia em que o governo anunciaria um plebiscito para decidir sobre sua continuidade, caças da Aeronáutica bombardearam a sede do Executivo. Foi o início do desmantelamento total, tanto de um reformismo radical que pretendeu implantar um capitalismo de Estado por dentro do regime democrático, quanto de um conjunto de instituições que iniciaram a construção de um Sistema de Conselhos Proletários.♟