O ano de 2020 foi marcado por movimentações relevantes nos tabuleiros da democracia burguesa por todo o nosso continente e, em todas elas, o capitalismo vem mostrando sua habilidade de absorver conflitos de classe, sempre trazendo-os para o campo das suas instituições da conservação.
EUA
O último ano de mandato foi desastroso para a gestão Donald Trump. Ao lidar com a pandemia de COVID-19, alternou entre o negacionismo e a incompetência e, como resultado, em julho os EUA já registravam 20% dos casos de contaminação no mundo, mesmo possuindo apenas 4% da população mundial. Além disso, diante da onda de protestos “vidas negras importam” em resposta a flagrantes de brutalidade policial motivadas por racismo institucionalizado, as tentativas de postura “neutra” da Casa Branca inflamaram ainda mais os manifestantes, que se espalharam por todo o país, além de gerar uma reação de supremacistas brancos armados nas ruas. Em resumo, sob a promessa populista de tornar a “América” grande novamente, a sensação que se tem entre os estadunidenses é a de que o país está doente e dividido.
Joe Biden, que em 1987 havia desistido da candidatura presidencial e em 2020 chegou a ser a quinta opção do Partido Democrata, se elegeu numa disputa acirrada e parece ter deixado uma sensação de esperança em muitos setores políticos que se dizem progressistas mundo afora. Seus eleitores esperam que ele seja capaz de lidar com a pandemia e com a recuperação da economia, mas, acima de tudo, que consiga reconstruir uma estabilidade política interna aos níveis pré-Trump, afinal, para um país exercer imperialismo é preciso antes ter feito a lição de casa.
Para essa tarefa de “unir novamente” seus cidadãos, Biden terá que agradar tanto a direita do Partido Republicano quanto a ala progressista de seu partido. Dessa forma, para acalmar os ânimos dos movimentos antirracistas tem a seu favor o fato de já ter sido vice-presidente de Obama por oito anos e sua atual vice ser Kamala Harris, senadora negra da Califórnia. Outro exemplo nesse sentido é a sua indicação para o cargo de secretário de defesa ser o general Lloyd J. Austin III, que, se aprovado pelo Congresso, será o primeiro negro a chefiar o Pentágono. Tirando todo esse marketing identitário que promete permear sua gestão, o passado de Biden diz muito sobre o que esperar sobre a política externa dos EUA pelos próximos 4 anos.
Em seis mandatos consecutivos como senador pelo estado de Delaware e em dois como vice-presidente, Biden sempre se portou de forma pendular ao apoiar ou não o envolvimento de seu país em conflitos armados. Foi contra a guerra do Golfo e a favor da participação estadunidense nas guerras nos Bálcãs e na invasão do Iraque e do Afeganistão. Mais recentemente, em sua campanha presidencial, manifestou-se contrário ao apoio de seu país à Arábia Saudita na guerra contra o Iêmen. Mas suas declarações pessoais demonstram que todas essas escolhas sempre foram guiadas por uma preocupação com a reação da opinião pública. Em 2011, diante dos resultados da invasão da OTAN na Líbia, que ocorreu por meio de mercenários, treinamento de milícias locais e bombardeios por drones, comemorou o fato de os EUA terem gastado 2 bilhões de dólares e não terem perdido nenhuma vida. Dessa forma, se perceber que um conflito armado com algum outro país considerado inimigo tem potencial de unir seu povo e desviar as atenções dos problemas internos, assim o fará como tantos outros presidentes de lá já fizeram.
Diante desse cenário, é vergonhoso assistir a socialdemocracia brasileira comemorar a vitória eleitoral do democrata ianque, como se a derrota de Trump significasse o fim de tudo o que há de ruim na democracia burguesa. Fingem esquecer dos ataques que sofreram nos governos Obama/Biden quando foram arquitetados a operação lava-jato e o impeachment de Dilma, que chegou a ser grampeada pela NSA. Ignoram que venceu o candidato apoiado por Wall Street e pelo Vale do Silício. Mais uma vez essa “esquerda” mostra que se limita a torcer pelo bom funcionamento das democracias e pela estabilidade institucional ao redor do mundo e que pouco se importa com o proletariado internacional, que na prática é quem, infelizmente, morre, trabalha e mata outros proletários em nome do capital.
“Eles devem ficar cientes de que a incompetência e a negligência de Trump na América Latina e Caribe terminarão no primeiro dia do meu governo.” — Joe Biden
Bolívia
E por falar em imperialismo estadunidense, a Bolívia deu, em suas últimas eleições, um exemplo de como a burguesia consegue resolver suas contendas locais e garantir que o proletariado se sinta representado no poder de Estado. Após a crise institucional de 2019, em que a extrema-direita destituiu Evo Morales em conluio com as forças armadas, em 2020 realizou-se nova eleição presidencial. Ocorreu um ajuste interno no partido de Evo, o Movimento ao Socialismo (MAS), e o candidato lançado foi Luis Arce, que acabou sendo eleito. Mas dessa vez a direita não questionou o resultado, nem alegou fraudes no pleito como havia feito com Morales. O que explica tal mudança de comportamento?
A Bolívia possui atualmente a maior reserva de Lítio do mundo, com cerca de 19 bilhões de toneladas, e esse minério é fundamental para a fabricação de baterias de celulares, carros elétricos, etc. Enquanto Evo era presidente, as mineradoras Tesla (EUA) e Pure Energy Mineral (Canadá) não conseguiram fechar um acordo de exploração direta. Alguns meses antes da eleição, o dono da Tesla, Elon Musk, declarou que daria golpe em quem quisesse. Com a eleição de Luis Arce, parece estar garantida a exploração do Lítio boliviano por essas empresas e, ao mesmo tempo, uma calmaria nas ruas, já que o vice de Arce, David Choquehuanca, é um líder notório dos camponeses indígenas, únicos a resistirem ao golpe contra Evo no ano passado.
“Podemos constatar também que o capitalismo tem contradições e só pode viver da exploração e que as pessoas lutarão contra a exploração. Mas temos ao mesmo tempo divisões e se os trabalhadores conseguirem ultrapassar estas divisões os capitalistas conseguirão os obrigar a novas divisões. O grande problema pra mim está no interior da classe trabalhadora. Este é o problema central, o problema da reorganização no interior da classe trabalhadora.” — João Bernardo
Chile
No último 25 de outubro, após um ano da jornada de revoltas populares que pararam o Chile, realizou-se um plebiscito em que 78% dos chilenos demonstraram querer uma nova constituição e, para tanto, uma assembleia constituinte a ser eleita em abril de 2021 com paridade de gênero. A atual constituição é de 1980, elaborada na ditadura Pinochet sob forte influência liberal dos chicago boys, e prevê um “Estado Subsidiário” e não um “Estado Social” como agora desejam, e a consequência disso foi um país no qual a água, a eletricidade e a previdência estão juridicamente nas mãos de empresas privadas.
Existe a possibilidade de uma nova Constituição melhorar minimamente as condições de vida do proletariado chileno, ao menos em um primeiro momento. No Brasil temos uma “Constituição Cidadã” desde 1988, que já sofreu mais de 100 emendas e outras tantas estão por vir sob a batuta de um chicago boy (Paulo Guedes) que sonha com sistemas públicos de saúde e educação custeados pelos usuários.
As revoltas chilenas não tiveram caráter de luta proletária, apenas popular e nacional. Uma constituinte é, em verdade, uma derrota, pois toda aquela mobilização tinha energia e potencial para muito mais do que morrer nas urnas e no parlamento. O campo das leis é apenas mais uma arena burguesa na qual leva-se anos de lutas para aprovar uma reforma, mas bastam alguns dias de desmobilização para que ela seja revogada.
Além da consciência de classe, faltou ao proletariado chileno cultivar a história de suas lutas e lembrar que em 1971, sem internet, redes sociais nem divisões identitárias, chegou-se muito mais longe em termos de auto-organização e tentativas de gestão operária da produção.
Nada a comemorar
Como já havíamos avaliado no #BB51, a Bolívia passava apenas por uma disputa intra-burguesa e as revoltas no Chile não tinham caráter classista e nem autônomo. Para esses e outros desafios, a democracia burguesa sempre terá saídas, assim como para o medo diante de presidentes “fascistas”, acima ou abaixo do Equador. Assim, mais um ano se passa e o proletariado segue fragmentado a favor da manutenção da sua dissolução enquanto classe, orientado ora para bandeiras eleitorais, ora para nacionais e permanentemente para identitárias. ♟