No número anterior expusemos como as democracias tratam aqueles que fazem valer conquistas democráticas contra a própria democracia. Os casos de Assange, Snowden e Manning são exemplares para demonstrar a toda a população mundial que os tempos em que a burguesia foi uma classe revolucionária integram um passado distante e que, embora propague ideologias de defesa dos direitos humanos, não hesita em dar um tratamento medieval a quem representar um obstáculo a seus interesses.
Se de um lado os setores mais reacionários (direita do capital) defendem abertamente as piores punições possíveis aos inimigos da burguesia e dos gestores, de outro é curioso perceber como os setores da social-democracia (esquerda do capital) sempre se perdem em sua atuação por um capitalismo menos desumano. Quando são oposição a um determinado regime, vociferam contra a barbárie, apontam as mazelas do sistema prisional e clamam por garantias fundamentais. Mas quando são eleitos e tornam-se gestores do imperialismo, fazem questão de provar ao conjunto dos capitalistas sua competência em garantir a ordem social, custe o que custar. Além disso, silenciam em relação a governantes de outros países dos quais sejam aliados, independente das atrocidades que tenham praticado. O que só revela o caráter pessoal/partidário/classista do poder político usando o proletariado como instrumento.
Na sociedade em que vivemos a defesa das liberdades e dos direitos civis e políticos jamais será absoluta, pois varia ao sabor das tendências políticas que gerem o capital em determinada época e local. Exemplos não faltam. O Iraque foi invadido pelos Estados Unidos em nome da democracia, para libertar um povo do jugo de um tirano. Ocorre que esse tirano não passava de um lacaio dos EUA alçado ao poder décadas antes para massacrar comunistas e que, anos depois de uma longa lista de serviços prestados aos capitalistas, acabou por se tornar um empecilho à extração de petróleo nos termos sempre renovados que os mesmos EUA exigiam.
Nos três casos citados sobre vazamentos de informações e prisões políticas é interessante notar que os grandes veículos da mídia corporativa que publicaram os dados fornecidos em primeira mão não sofreram qualquer tipo de punição ou perseguição estatal, lucraram muito e não moveram uma palha em defesa desses presos.
Quando se fala em presos políticos é preciso ter em mente que toda prisão é seletiva, ou seja, os Estados nunca vão punir todas as condutas desviantes, mas apenas as que ferem os interesses das classes capitalistas considerados em seu conjunto. Apenas serão presos, aqueles que as classes dominantes querem ou permitem que sejam presos. Tanto nos cárceres estatais quanto nos quartéis das forças de segurança há milhares de homicidas. A questão fundamental é quem eles mataram e em defesa de qual interesse, pois dependendo da resposta o agente pode ser condenado ou condecorado. O caso Snowden é bem ilustrativo. Por ter vazado segredos dos EUA, conseguiu asilo na Rússia. Se tivesse exposto segredos do governo russo ao resto do mundo, certamente teria sido bem recebido pelo governo estadunidense.
Enquanto a direita do capital teme a revelação de seus crimes ao mundo, a esquerda do capital usa a defesa das liberdades para disseminar ilusões e conseguir vencer eleições espalhando propostas impossíveis de serem realizadas como “governos transparentes” e “controle cidadão dos agentes repressivos do Estado (polícias e Forças Armadas)”.
Para o proletariado com consciência comunista, a repressão sempre será mais dura, pois não possui nenhum interesse em comum com burgueses e gestores, nem se contenta com utopias de um capitalismo mais brando, portanto será sempre tratado como inimigo de Estado. Dos incontáveis exemplos que a história das lutas proletárias nos fornece, citaremos apenas dois por serem atuais e representativos dessa diferença de tratamento por motivos classistas.
O primeiro é o de Cesare Battisti. Ex-militante dos PAC (Proletários Armados pelo Comunismo) que, na Itália dos anos 1970, se somou a milhares de jovens proletários que enfrentaram o terrorismo do Estado Italiano reagindo de forma organizada às ações da direita do capital que pretendia simplesmente a eliminação de quem se colocasse contra seus interesses: políticos profissionais, Exército, Igreja (Vaticano), Máfia e Empresas.
Para esta parcela do proletariado na Itália, lutar contra o Terrorismo de Estado em plena democracia significava se confrontar com ações planejadas e deliberadas a partir do interior das próprias estruturas de poder, as quais consistiam em implantar destruição e terror entre as populações como instrumento para expandir a dominação imperialista sob a bandeira do combate ao terrorismo individual em suas formas civis. Trata-se de uma estratégia política que inclui: a) reprimir, contra as leis, todas as formas de protesto social e oposição política; b) clandestinidade, anonimato e onipresença do aparato repressor; c) campanhas de difamação com apoio midiático; d) detenções arbitrárias acompanhadas de processos e julgamentos forjados; e) prática constante de torturas, sequestros e desaparecimentos, além do uso de assassinatos em massa. Tudo isso para gerar: a) imobilismo e passividade, e b) destruir a solidariedade de classe por interromper a possibilidade de que experiências organizativas, de ganho de consciência de classe e de luta política ativa e coletiva sejam transmitidas para as novas gerações.
Assim, torna-se possível entender os motivos pelos quais o Estado italiano manteve durante 40 anos uma tenaz perseguição internacional a Battisti. Era preciso que sua punição se tornasse exemplar para desencorajar o proletariado do mundo inteiro a tentar enfrentar o poder do capital. Mesmo derrotados, não pode existir perdão para revolucionários que não se arrependem e se recusam a cair nos braços da esquerda do capital, sempre disposta a acolher quem quer se limitar a defender a democracia como regime político final da humanidade. Em sentido oposto, para o proletariado comunista, o caso de Battisti é exemplar por demonstrar como o fascismo penetrou as democracias contemporâneas.
“Os meios de comunicação, em si mesmos um braço do poder mega-corporativo, alimentam a indústria do medo, de modo que as pessoas estão preparadas como bombas para apoiar as guerras de rumores, insinuações, lendas e mentiras.” — Mumia Abu-Jamal
O segundo é o do jornalista Mumia Abu-Jamal, ex-militante do Partido Panteras Negras dos EUA (PPN), condenado à morte em 1982, pelo suposto assassinato de um policial na Filadélfia, em um processo cheio de irregularidades, sem investigações, com provas forjadas e júri manipulado. Anos depois o verdadeiro assassino se apresentou, mas o judiciário se recusou a ouvir sua confissão. Depois de passar quase 30 anos no corredor da morte, podendo ser executado a qualquer momento, em 2011 a condenação de Mumia foi convertida em prisão perpétua.
Ao contrário do que é noticiado, mesmo nas mídias alternativas, não se trata somente da condenação de um militante contra o racismo, mas de alguém comprometido com a revolução proletária. Tanto que, anos antes de ser julgado, Jamal já havia sido inserido em uma lista do FBI como pessoa que ameaçava a segurança dos Estados Unidos, e em caso de decretação de emergência nacional seria imediatamente preso.
“Você vê a lei e a ordem? Não há nada além de desordem e, em vez de lei, há a ilusão de segurança. É uma ilusão porque se baseia em uma longa história de injustiças: racismo, criminalidade e o genocídio de milhões de pessoas. Muitas pessoas dizem que é loucura resistir ao sistema, mas, na verdade, loucura é não fazê-lo.” — Mumia Abu-Jamal
O PPN (1966-1982) atuava em locais de moradia, trabalho e estudo, incentivando a auto-organização da população negra como parte da emancipação e da união do proletariado internacional. Começaram em Oakland, na Califórnia, mas em pouco tempo já possuíam sedes por todo o país. Para resistir contra o racismo institucional do Estado, promoveram a organização de grupos de autodefesa em bairros operários, conseguiram firmar um pacto de não-agressão entre diferentes grupos étnicos das regiões de baixa renda, criaram um programa em que as crianças ganhavam refeições antes de irem à escola e eram apresentadas a uma visão anticapitalista sobre a história da exploração dos negros. Também promoveram programas de ajuda médica, distribuição de alimentos e roupas, ajuda a presos políticos e transporte para seus familiares. Tudo de forma autogerida.
Foram vítimas de várias ações ilegais e clandestinas das polícias (emboscadas, atentados terroristas e ataques às suas sedes). Em 1968, dois anos após sua fundação, o então chefe do FBI já os considerava a maior ameaça para a segurança interna dos EUA. Os membros mais proeminentes da organização foram assassinados ou julgados por júris inteiramente selecionados pela cor da pele e pela ideologia. Mesmo com tudo isso, a polícia somente conseguiu destruir o trabalho de autogestão nos locais de influência dos Panteras quando fizeram um acordo com as máfias do tráfico de drogas para que atuassem livremente e conseguissem aumentar o consumo de entorpecentes ilícitos naqueles locais.
O capital sabe muito bem defender seus interesses, acima de tudo e de todos. Cabe ao proletariado a tarefa de aprender a defender os seus, de forma autônoma, auto-organizada e intransigente.♟