Derrotas de 2019

Derrotas de 2019

O primeiro ano de governo Bolsonaro reflete a pressa e o apetite voraz da burguesia em aprovar seu substancial pacote de investidas contra o proletariado. Seu carro-chefe era a Reforma da Previdência e quanto mais rápido o governo a aprovasse, mais rápido desbloquearia a pauta do Congresso para outros temas. E alcançou esse objetivo em menos de onze meses.

Vale destacar que mesmo com um aparente descompasso entre Executivo e Legislativo, a reforma tramitou sem nenhuma ameaça à sua aprovação. Foi notável o empenho do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, em aprovar o projeto com rapidez. Tratamos aqui no BB#16 e no BB#42 sobre os interesses da burguesia nacional em torno da previdência. Agora o proletariado brasileiro terá que trabalhar mais anos formalmente para acessar uma aposentadoria com rendimentos ainda mais baixos que os anteriormente praticados.

Outro ataque substancial foi o Programa Carteira Verde e Amarela, que na prática é uma segunda reforma trabalhista. Dentre uma série de medidas perversas, prevê, por exemplo, a tributação de 7,5% sobre o seguro-desemprego, destinando-a para o INSS. Com o discurso de “menos direitos, mais trabalho”, o governo diminui o FGTS a ser recebido, libera o trabalho aos domingos sem pagamento em dobro, aumenta as jornadas de trabalho, facilita demissões, reduz as hipóteses de concessão de auxílio-acidente, diminui o valor do auxílio-doença e desonera o empresariado de várias responsabilidades fiscais.

Ressalte-se que as mulheres são especialmente prejudicadas. Diante de um histórico de declarações que visam legitimar a desigualdade salarial entre homens e mulheres, de propostas que tentaram expor as gestantes e lactantes a jornadas de trabalho em ambientes insalubres e, ainda, diante de estatísticas que apontam que 48% das mulheres perdem o emprego em até 12 meses após o retorno da licença-maternidade, foi decidido que as contratadas em regime temporário que engravidarem não terão o direito de estabilidade no emprego, direito que se estende para gestantes em outras modalidades de contrato. Essa decisão muda a regra que proíbe a demissão sem justa causa desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto no caso do trabalho temporário. Ou seja, mulheres que já estavam em condição de desemprego e vulnerabilidade estão sujeitas ao desamparo no momento de maior necessidade.

Além disso, no Dia Internacional das Pessoas com Deficiências foi apresentado o PL 6.195/2019 que permite que as empresas substituam a contratação de deficientes pelo pagamento de um valor correspondente a dois salários mínimos mensais. Isso desobriga as empresas a reservarem vagas para deficientes físicos. Hoje estima-se que perto de 500 mil brasileiros com deficiência estão ocupados profissionalmente desde a instituição das cotas em 2015. Acabar com as cotas, que ainda não apresentam plena eficiência, significa devastar ainda mais a autoestima e a pouca inclusão dos portadores de necessidades especiais, vistos como trabalhadores que comprometem a produtividade até que estejam incorporados ao modelo de trabalho. Em geral com pouca qualificação, os candidatos costumam ser empurrados para funções pouco importantes devido à falta de experiência diante de uma vida inteira de exclusão. Nesse sentido, a coreografia de Michele Bolsonaro em Libras apenas serviu para disfarçar um ano que seguiria com intensas ofensivas, mesmo àquelas pessoas que já sofrem historicamente com a inabilidade do Estado em políticas de inclusão.

Não satisfeitos, revogaram diversos dispositivos legais e Normas Regulamentadoras que preveniam acidentes laborais, criaram regras que dificultam a fiscalização das empresas quanto à segurança no trabalho e reduziram o valor e as hipóteses de multas em casos de infração. Parecem querer ainda mais trabalhadores deficientes ou mortos.

Existe sempre uma diferença entre classe operária e os sindicatos. A classe operária deve olhar para além do capitalismo, enquanto que o sindicalismo está inteiramente confinado nos limites do sistema capitalista. O sindicalismo só pode representar uma parte, necessária mais íntima da luta de classe. Ao desenvolver-se, deve necessariamente entrar em conflito com a classe operária, a qual pretende ir mais longe.” — Anton Pannekoek

Na esfera política, a polarização gerada pela soltura de Lula já pode ser sentida no cotidiano. Na visão do eleitorado bolsonarista, erguem-se diversas forças que desejam barrar a “jornada histórica em defesa do país, da ordem e da família”, assim, desde Lula até instituições como o Congresso e o STF, a Globo e a Folha, o PT e o PSDB supostamente querem se colocar contra a “redenção nacional” que está em andamento. O vídeo das hienas contra o leão, divulgado pelo próprio presidente, traduz justamente essa narrativa. Nesse sentido, a soltura de Lula pareceu encomendada para reenergizar uma polarização em decadência. Seja como for, enquanto os ânimos se acirram, Lula esperará o momento mais favorável para voltar à postura conciliadora de sempre.

Ademais, foi anunciada a fundação de um partido encabeçado por Bolsonaro e seu clã. Já era evidente que Bolsonaro não se encaixava no partido nanico e que o assumiu como poderia ter assumido qualquer outro. Não existe um movimento “peesselista”, mas “bolsonarista”. O novo partido se chamará Aliança pelo Brasil e remete à Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido que deu sustentação parlamentar à última ditadura militar. Nem o mercado financeiro vê tal criação com bons olhos, pois defende que o presidente deveria se dedicar apenas à agenda de reformas. O mais assombroso desse cenário é, na verdade, a ausência completa de qualquer forma ou tentativa de resistência efetiva contra essas medidas. Ou seja, em 2019 sofremos derrotas duplas: ao mesmo tempo em que fomos atacados, sequer houve lutas para que se pudesse aprender a resistir.

Já havíamos previsto no BB#38 a tímida resistência que a esquerda do capital praticaria frente a tudo isso. PT e PDT, por exemplo, eram contra o projeto de Reforma da Previdência do governo, mas tinham os seus próprios projetos de reforma. Já o PSOL se pautou por comemorar as emendas que foram feitas no projeto original, exaltando a mitigação do ataque. Porém, vale lembrar que no dia 20 de fevereiro, Jair Bolsonaro e Paulo Guedes foram pessoalmente entregar o projeto de Reforma da Previdência e no momento da solenidade os parlamentares do PSOL estavam nos corredores do Congresso fazendo um protesto contra o “laranjal” do PSL.

Em recente entrevista nos EUA, Guedes afirmou que desacelerou o pacote de reformas intencionalmente quando eclodiram as manifestações populares massivas no Chile, Equador e Bolívia, pois o governo federal teve receio de alguma de suas medidas servir de motivo para que os brasileiros também fossem às ruas. Ou seja, revoltas em países vizinhos têm mais força do que a esquerda parlamentar brasileira.

Se a classe dirigente for prudente, reconhecerá a utilidade de um simulacro de luta, se quiser que os dirigentes sindicais conservem alguma influência sobre seus membros.” — Anton Pannekoek

A pauta de 2020 deve se iniciar com a Reforma Administrativa que tem como objetivo diminuir as obrigações do Estado. Como consequência, teremos uma precarização dos serviços e das condições de trabalho dos servidores públicos. Sob o pretexto de enxugar a máquina estatal, irão destinar mais recursos para o pagamento dos juros da dívida pública. Também há um projeto de reforma sindical no horizonte, e o papel do sindicalismo em sua imensa maioria tem sido tentar se reconciliar com o governo para articular um rearranjo em sua forma de financiamento depois do fim do imposto sindical. Houve setores do sindicalismo que chegaram a propor a participação na capitalização da previdência. Como já argumentado em nossas edições, o sindicalismo não será a forma de resistência e luta do proletariado, já que almeja ser a ferramenta de conciliação entre capital e classe proletária, porém sempre em detrimento do proletariado.

A esquerda do capital, multiculturalista e universitária, encerra os debates atuais apenas no nível da violência simbólica e no suposto despreparo intelectual do atual governo. Ao mesmo tempo, fica evidente que a esquerda parlamentar e sindicalista não cria ou mobiliza lutas, mas somente as parasita, já que não propôs rigorosamente nada nesse ano para enfrentar o governo que acusam de fascista. Grosso modo, sua única pauta “social” é o famigerado “Lula Livre”; quando liberado, proferiu mais dois ou três discursos mentirosos e conciliadores. Assim, a fim de evitar o erro das manifestações de 2013 em que a extrema esquerda foi expulsa das ruas abrindo espaço para a ala conservadora, devemos expulsar a esquerda institucional, que já provou de forma inconteste que não representa interesses do proletariado. Todos os proletários devem prestar solidariedade entre si, e com isso se organizar para resistir aos ataques em seus locais de trabalho, estudo e moradia. Mas resistir enquanto classe e não como cidadãos, eleitores ou “povo brasileiro”. ♟