Do charme à brutalidade da democracia

Do charme à brutalidade da democracia

Se no Boletim anterior abordamos a democracia como o regime mais sagaz que a humanidade já produziu, tentando se apresentar como inclusiva, onde o proletariado faria parte do processo decisório, apesar de não controlar nada, neste veremos a face real – e  brutal -, da principal democracia do mundo.

Fale o que quiseres, mas eles estão de olho…

As mídias digitais têm exposto vídeos de abordagens de agentes federais tentando intimidar pessoas por postagens que, de alguma forma, são depreciativas ao governo Trump. Para além de demonstrar uma tentativa de censura indireta por meio de violência psicológica, essas abordagens transparecem o nível de vigilância que temos em nossas vidas. Cenas estereotipadas de homens de quepe vermelho em filmes da antiga Alemanha Oriental, ou de qualquer outro país onde imperava o capitalismo de Estado, com fones de ouvidos acompanhando conversas em telefones grampeados e em escutas implantadas em ambientes acadêmicos e sindicais são cada vez mais comuns e amplas nas democracias do capitalismo de mercado ocidental.

A diferença dos filmes da época da Guerra Fria é que hoje em dia tudo está mais facilitado com a internet e suas mídias digitais, chamadas ideologicamente de “sociais”. Não é mais preciso grampear, basta a polícia estatal hackear, quebrar criptografias (que na maioria estão cheias de pontos fracos), ou ainda forçar as empresas que administram esses dados virtuais a entregarem as informações, “privadas” ou não, de quem usa esses meios digitais de comunicação.

Uma aparente liberdade de fala e escrita, entre vídeos, fotos, piadas e dancinhas, tem os seus limites revelados quando o seu conteúdo coloca em xeque o sistema social. E ultimamente essas falas nem precisam ser tão contundentes na luta de classes. Por vezes a democracia permite uma intervenção meramente por questionar os interesses de uma parcela da burguesia, como tem ocorrido com o governo Trump.

A linha elástica que separa a democracia da ditadura

O presidente dos EUA tem ordenado o envio de soldados da Guarda Nacional para cidades controladas pelo partido de oposição com o argumento de combater a “criminalidade descontrolada”. A semelhança com os argumentos para aumentar o uso da força estatal não é mera coincidência: uma linha elástica permite medidas ditatoriais em plena vigência da democracia.

A operação ideológica da burguesia classifica os protestos contra a agenda de imigração de Trump como “criminalidade”, mesmo no regime democrático. É considerado crime se revoltar contra a prisão de imigrantes, substanciada no simples fato da cor da pele e do sotaque do sujeito, literalmente. Parece absurdo numa democracia, mas essa decisão foi autorizada temporariamente pela Suprema Corte da maior potência capitalista do planeta.

Esse uso recente da Guarda Nacional permite identificar outra característica peculiar da democracia. Ela foi criada, a princípio, para atuar em grandes emergências, como desastres naturais, ungida por um ideal humanitário. Diferente da ditadura, a democracia precisa preservar esse véu de direitos humanos a todo custo para justificar a sua existência, que seria “a favor de todos cidadãos”. Porém, quando ela é utilizada para conter protestos de maior escala a sua verdadeira essência de classe aparece. 

Ilegalidade? 

Sempre que a democracia demonstra a sua face real, quando a ideologia não consegue legitimar a realidade, logo surgem seus defensores no campo da esquerda afirmando serem atitudes ilegais, que ferem o Estado de direito, preceitos e princípios históricos. Porém, a posição da Suprema Corte estadunidense mostra que não é assim. Esses atos de Trump estão perfeitamente de acordo com o regime democrático. Não são ações de um lunático que tenta driblar o sistema: essas são as mais fiéis ações do sistema social capitalista e democrático.

O protesto “No Kings” (Sem Reis) que ocorreu em várias cidades dos EUA, no mês passado, tentou trazer essa ideologia democrática estampada já no seu chamamento, como se o que o presidente Trump faz pudesse ser aceito apenas num regime monárquico, e não numa democracia, “esquecendo-se” das monarquias constitucionais.

Democracia genocida

A censura democrática se utiliza ainda de outras ideologias para calar aqueles que protestam, mesmo quando o protesto é contra um genocídio. O exemplo mais recente é da luta contra o genocídio na faixa de Gaza, apoiado pelos EUA e diversas outras nações democráticas. Em Granada, na Espanha, um médico está sendo perseguido pelo seu conselho de classe por escrever nas receitas que o farmacêutico não deve vender medicamentos da empresa Teva, que apoia o Genocídio praticado pelo Estado de Israel, esse também considerado “a única democracia do Oriente Médio”.

Só a esquerda do capital acredita na defesa da democracia no seu conjunto. Não se trata de um regime que ataca o proletariado de um modo mais brando, é apenas um ataque mais sofisticado e a aliança do imperialismo ianque com o sionismo no massacre dos palestinos de Gaza deixa isso claro e evidente.

Os europeus chamam “guerra de secessão” ao que do outro lado do Atlântico chamam, com franqueza muito maior, guerra civil: para resolver a pior crise de sua história, a democracia estadunidense teve que pagar o preço de 600.000 mortes, tantas quanto as baixas que sofreu o país em todos os conflitos que travou no estrangeiro.” — Gilles Dauvé & Karl Nesic

Liberdades democráticas?

A mesma Chicago que hoje ainda desperta o ódio da extrema-direita estadunidense no passado já foi palco de outras atrocidades contra o proletariado, como em primeiro de maio de 1886, numa manifestação pela jornada de 8 horas que deu origem ao Dia Internacional do Proletariado, reprimida com armas de fogo. A repressão política da democracia estadunidense também esteve presente na prisão e execução de Sacco e Vanzetti em 1921, por serem anarquistas, mais tarde consolidada no Macarthismo. Este ia além da repressão daqueles que expressavam publicamente ideias de esquerda em manifestações. Essa política de Estado investigava e  perseguia funcionários públicos que tivessem no seu passado algum envolvimento com partidos comunistas. 

A segregação racial foi parte fundamental da democracia estadunidense institucionalizada até o final dos anos 1960, quando inúmeros movimentos protagonizados por Martin Luther King, Malcom X e os Panteras Negras foram duramente reprimidos pela polícia. Linchamento em massa em praça pública de negros por brancos, enforcamentos sem processos judiciais, espancamento de manifestantes em atos pacíficos: tudo fazia parte deste regime democrático.

A Lei Patriota de 2001 transformou em terrorismo manifestações de povos do Oriente Médio para legalizar intervenções imperialistas naquela região estratégica da geopolígica global. Em solo estadunidense serviu para aprimorar ferramentas de repressão e investigação policial em geral.  Tática semelhante à utilizada por Trump agora para justificar deportações em massa a intervenções na América Latina, agora sob a mentira do combate ao narcotráfico.

“Somos livres na democracia, com uma liberdade que está aí para não servir, que continuará estando enquanto não sirva. Respeitar essa liberdade significa proibir-se de lutar inclusive contra o que deveria desencadear a revolta mais óbvia: a supressão da democracia.” — Gilles Dauvé & Karl Nesic

O aprendizado que fica para o proletariado

A organização autônoma da classe é a única forma do proletariado garantir o controle dos meios de produção e reprodução da vida, sem intermediários. Os outros regimes foram criados por outras classes, com o objetivo de perpetuar seu domínio sobre a sociedade. Apesar de alguns regimes darem maior liberdade para a auto-organização da classe, tolerando certas liberdades de expressão e organização, as novas ferramentas de investigação e vigilância estatais cada vez mais limitam esses potenciais benefícios, especialmente quando o domínio do capital é colocado em risco.

Nenhuma forma de governo utilizada pela burguesia e seu Estado dará conta das tarefas do comunismo. Mais que isso, esses exemplos mostram que a democracia de tudo fará para aniquilar a autonomia da classe. Ao enaltecer uma forma de regime do Estado burguês, mesmo a democrática, a classe acaba por dificultar a luta pela criação, em germe, de relações políticas e econômicas comunistas.♟