Duas faces de uma mesma moeda: amordaça nas escolas e ensino confessional

Duas faces de uma mesma moeda: amordaça nas escolas e ensino confessional

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a validade do acordo firmado pelo governo Lula com o Vaticano em 2010 e a ofensiva legislativa do Movimento “Escola sem Partido” nas Câmaras de Vereadores de 200 cidades brasileiras tentando transformar em lei a sua proposta, pode parecer a muitos como estando desconectadas. Ledo engano.

Existem três formas de os Estados da Federação cumprirem a previsão constitucional (art. 210, §1º) e legal (Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Nacional) acerca do ensino religioso nas escolas de nível fundamental. A primeira é o ensino sobre a história das religiões, em que as aulas são ministradas por professores de carreira com formação em sociologia, filosofia ou história, abordando a religião como um fenômeno sociológico e cultural. A segunda é o ensino confessional, que é clerical e promove uma ou mais confissões religiosas em detrimento das demais. A terceira forma é a interconfessional, que promove, de forma ecumênica, um consenso em torno das religiões hegemônicas na sociedade, que em nosso caso são as cristãs.

Em 2010 a Procuradoria da República ajuizou no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.439 – DF) pleiteando que fosse firmado entendimento de que apenas o ensino sobre história das religiões se concilia com o Estado laico previsto na Constituição Federal (art. 19, I) e que tanto o ensino confessional quanto o interconfessional ferem a vedação legal à conversão religiosa no ensino público. Pedia também que fosse removido o trecho do art. 11, §1º da Concordata entre Brasil e a Santa Sé (assinado pelo governo Lula) que dá primazia ao catolicismo no ensino público religioso.

Naquele ano, somente o Estado de São Paulo promovia o ensino da história das religiões, enquanto Rio de Janeiro, Acre, Bahia e Ceará promoviam o ensino confessional e todos os outros Estados da Federação o faziam de forma interconfessional.

O pedido da Procuradoria da República não foi acolhido, pois o STF julgou (por 6 votos a 5) que o ensino confessional nas escolas públicas é plenamente compatível com a laicidade do Estado. Ressalte-se que tal entendimento se dá no sentido oposto ao das Cortes Constitucionais dos países de capitalismo avançado que possuem maioria cristã. Na Alemanha e na Itália afirmou-se a inconstitucionalidade dos crucifixos em salas de aula e no Estados Unidos a Suprema Corte se posicionou contra a realização, pelas escolas públicas, de qualquer oração, de leitura da Bíblia e do ensino do criacionismo.

Nas escolas que praticam o ensino confessional ou interconfessional há diversos relatos de discriminação que incluem violência psicológica e física contra estudantes e demissões ou afastamentos de professores quando adeptos de religiões minoritárias (geralmente de matriz africana).

A sociedade deveria garantir às crianças um ambiente acolhedor e seguro na escola, livre de qualquer segregação e principalmente que suas mentes não sejam confundidas por absurdos. Portanto, não deveria ser permitido que crianças fossem ensinadas a acreditar na veracidade literal da Bíblia onde um homem – Adão – vive por 930 anos e uma mulher virgem – Maria – engravida e dá à luz. Isso seria o mesmo de fazê-las crer que a posição dos planetas governa a sua vida ou ainda que nossas florestas são habitadas por seres encantados. O mais importante não é ensinar o que pensar, mas como pensar. Depois de serem expostas de forma adequada às evidências científicas, quando se tornarem adultas poderão com tranquilidade avaliar e decidir se desejam crer ou renegar crenças.

Os setores conservadores no Brasil têm proferido sérios ataques contra o sistema escolar. Por meio do projeto “Escola Sem Partido” buscam prevenir o desenvolvimento de um pensamento crítico entre os estudantes tolhendo-lhes a habilidade de refletir, concordar ou discordar com o que é exposto em sala de aula, além de impedir avanços no sentido da superação de mazelas relacionadas à orientação sexual e/ou identidade de gênero, na medida em que prevê punições aos educadores que abordarem temas considerados controversos como política, ciência ou educação sexual.

Há em cada cidade uma tocha – o professor; e um extintor – o padre.” — Victor Hugo

A amplitude do cerceamento cultural almejado por este projeto foi ilustrada em setembro, na cidade de Porto Alegre, quando o Banco Santander cancelou uma exposição após protestos capitaneados pelo Movimento Brasil Livre (MBL). Nela havia obras de artistas nacionais e internacionais que davam liberdade a uma releitura crítica da religião e abordavam a temática da sexualidade para além dos limites impostos pelas religiões. Protestos semelhantes se repetiram em São Paulo e no Rio de Janeiro.

A reforma do ensino médio permite, dentre outras aberrações, a contratação de professores com “notório saber” e põe fim à obrigatoriedade do ensino de filosofia, sociologia e artes comprometendo a formação dos jovens (sobretudo do sistema público de ensino), na medida em que privilegia a formação tecnicista em prejuízo do exercício de reflexão sobre a realidade. Vale lembrar que a ampliação dos Institutos Federais (antigos CEFET’s) em detrimento de novos cursos universitários já havia sido iniciada no Governo Dilma, com cortes às disciplinas humanas incluídas inicialmente nestes cursos técnicos.

Desta forma, por um lado temos aulas de ensino religioso, nas quais poderão ser professadas livremente qualquer tipo de ideia religiosa e moral e, por outro, o cerceamento das possibilidades de questionamento da sociedade, bem como das práticas e da moral religiosa.

Alguns setores do capitalismo, para manter seu poder e continuar o processo de acumulação, vão fazer toda sorte de alianças para combater o desabrochar do pensamento revolucionário e para que o proletariado permaneça a sua mercê material e politicamente. Esta já foi a prática do governo Lula quando assinou o acordo com o Vaticano e também dos setores da direita liberal tradicional ao apoiarem iniciativas como MBL e seu projeto da Escola Sem Partido.

Desejaria, e esta será a última e a mais ardente das minhas vontades, que o último dos reis fosse estrangulado com as tripas do último dos padres.” — Padre Jean Meslier (1664-1729)

A religião induz à aceitação e à paralisia, criando a ilusão de que as mazelas sofridas neste mundo serão recompensadas em uma outra vida, desviando o foco da necessidade de transformação radical da sociedade ao promover a ideia de um suposto além redentor. Some-se a isso uma formação acrítica e as classes dominantes garantem um sono tranquilo por muito mais tempo.

É preciso ter clareza de que a defesa de um Estado laico não é uma luta genuína dos explorados. Ela é uma pauta e uma conquista histórica da burguesia. Porém, é de grande valia para o proletariado na medida em que, se livrando da doutrinação religiosa e da usurpação material da igreja, poderá alçar vôo para sua emancipação social. Por isso, hoje é necessário que proletariado rejeite e combata qualquer política de aliança entre o Estado e a religião, assim como políticas que não permitam o livre desenvolvimento e ensino da ciência. Ciência esta que, majoritariamente, tem as suas limitações impostas pela sua concepção metafísica, com consequente separação entre teoria e prática, da qual o proletariado não pode depender, apesar de mais avançada do que explicações místicas e religiosas da realidade.

Esse Boletim não tem o objetivo de discutir a questão religiosa, o que nos propusemos foi esclarecer as ações de uma mesma política. Se por um lado a abertura das grades curriculares permite a doutrinação religiosa nas escolas, com profissionais formados pelas próprias igrejas e contratados pelo Estado, por outro, o projeto Escola Sem Partido tem como objetivo cercear, durante a formação escolar, qualquer iniciativa de um ensino que não se limite a ser mero reprodutor da sociabilidade empresarial-capitalista e da moral que o legitima. Desta forma, atende-se a dois objetivos: as mentes “esvaziadas” de ciência serão “preenchidas” pelo obscurantismo moralista religioso.

Fica para um futuro número do Boletim a discussão de um posicionamento sobre o fenômeno religioso e suas implicações para o proletariado. ♟