A Venezuela continua a enfrentar uma profunda crise socioeconômica e política, marcada por hiperinflação, escassez de alimentos e medicamentos, e uma intensa polarização política. Milhões de venezuelanos migraram para países vizinhos em busca de melhores condições de vida, gerando uma das maiores crises migratórias da América Latina. As sanções impostas pelos Estados Unidos e outros países têm agravado a crise, limitando o acesso da Venezuela a recursos financeiros e dificultando a importação de bens essenciais. A pandemia agravou ainda mais a situação, sobrecarregando o sistema de saúde já debilitado e intensificando a escassez de alimentos e medicamentos. A crise econômica aprofundou a desigualdade social, com milhões de pessoas vivendo em condições de extrema pobreza, o que também contribuiu para o aumento da criminalidade e da violência, com taxas de homicídios entre as mais altas do mundo. A disputa entre o governo de Nicolás Maduro e a oposição se intensificou nos últimos anos, com ambos os lados acusando-se mutuamente de autoritarismo, corrupção, etc.
Depois de décadas de tentativas de desestabilização, o embargo econômico contra a Venezuela aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos (EUA) em 2014 proíbe todas as empresas estadunidenses, ou estrangeiras que tenham negócios no país, de realizar transações e negociações com o Estado venezuelano. De lá para cá muitos adendos no mesmo sentido foram criados pelos EUA. Como numa guerra, cada nova medida buscava fechar as portas por onde a Venezuela pudesse tentar reverter, ou amenizar, os efeitos dos embargos anteriores. O Tesouro dos EUA proibiu a negociação dos títulos da dívida da Venezuela. O risco-país disparou imediatamente, equiparando-se ao de países em guerra. Junto com ele, o valor dos juros da dívida do governo venezuelano. O resultado da medida abalou diretamente a principal fonte de receitas em dólares do país – o petróleo -, fundamental para uma economia que importa 85% do que consome. Por consequência, houve a disparada da inflação e da falta de recursos para os serviços públicos e programas sociais do governo.
“Num contexto como o atual, em que nenhuma opção parlamentar pode cumprir um papel progressivo do ponto de vista dos interesses do proletariado, na qual o próprio reformismo é um movimento sem nenhum futuro, qualquer apoio ao parlamentarismo, ainda que se justifique por motivos temporais, serve para aumentar a confusão política do proletariado.” — Grupo de Comunistas de Conselhos da Galiza
Também como parte da ofensiva, o Petro – moeda virtual com lastro em petróleo criada pela Venezuela para aumentar as receitas do Estado – foi alvo de sanções. Em paralelo, as principais contas vinculadas ao Estado venezuelano em bancos estrangeiros – que poderiam ser um caminho alternativo para importação de produtos – também foram bloqueadas, inviabilizando o acesso a cerca de US$5 bilhões. Segundo economistas ligados ao governo esses recursos seriam suficientes para abastecer toda demanda de medicamentos da Venezuela pelo período de um ano. Isso também é o que custaria para financiar o sistema de educação, por dois anos. Ainda de acordo com a pasta econômica do governo, o total de US$24 bilhões bloqueados em todo o mundo seria suficiente para abastecer o país de todas as importações, por um ano completo, já que para isso são necessários aproximadamente US$20 bilhões.
Foi neste contexto que ocorreram as eleições presidenciais no último dia 28 de julho e para as quais até o momento em que fechamos este número ainda não havia um desfecho definitivo. O processo eleitoral venezuelano passou por uma disputa judicial. A oposição contestou a eleição de Nicolás Maduro para um terceiro mandato, embora institutos sérios de pesquisa já previssem essa vitória apertada. Depois de comparar as atas eleitorais com o resultado coletado pelo sistema eletrônico, o Judiciário validou a vitória de Nicolás Maduro e confirmou a existência dos ataques hackers. Tal validação, segundo a oposição, ocorre em virtude de as instituições estarem aparelhadas pelo partido governista.
Disputas eleitorais do capitalismo são jogos de poder com cartas marcadas. Marcadas pelos limites de interesses dos capitalistas, sejam burgueses ou gestores. Se por um lado tal crise institucional revela o pouco desenvolvimento do capitalismo no país com as maiores reservas de petróleo do mundo e os interesses imperialistas em jogo, por outro, como todo jogo eleitoral, não passa de um grande teatro armado para fazer o proletariado crer que tem algum poder decisório sobre a gestão social.
Aqui no Brasil, tanto a esquerda do capital quanto parte da esquerda que se propõe revolucionária, demonstraram apoio ao governo Maduro, em diferentes graus. Parecem estar olhando somente para o jogo do imperialismo mundial e se esquecendo da realidade material do proletariado venezuelano.
Uma coisa é reconhecer que as divisões entre os capitalistas podem ser exploradas em favor do proletariado em luta, mas isso exigiria um grau muito elevado de consciência de classe proletária em nível mundial, o que hoje é um cenário muito distante. Outra é essa postura patética de simpatia com o alinhamento imperialista formado por Rússia, China, Cuba, Coreia do Norte, Irã e Venezuela. Creem que só os países-membros da OTAN exercem imperialismo e que o atual governo venezuelano faria parte de uma frente de resistência que por si só beneficiaria os proletários. Sem falar da identificação que manifestam com regimes de capitalismo de Estado, de onde surgiram os referenciais teóricos dessa esquerda, que propositalmente confunde os interesses antagônicos de proletários e gestores.
“Para Lênin era sempre imperioso defender os operários contra os seus próprios impulsos, caso contrário, e devido à sua ignorância, seriam levados à derrota, gastando em vão suas forças e abrindo caminho para a contrarrevolução.” — Paul Mattick
Demonstrar qualquer simpatia com Maduro é ignorar a realidade dos trabalhadores que saíram da Venezuela em direção ao Brasil e hoje formam o terceiro maior fluxo migratório do mundo, é declarar que estão todos equivocados e que deveriam aguentar firme o atual governo porque supostamente é a opção menos pior. Essa esquerda delirante parece tratar uma eventual derrota do PSUV como a perda de um “foco de resistência” ao capitalismo, e que diante dessa possibilidade seria preciso evitar que o proletariado venezuelano cometesse um erro histórico ao votar no grupo político alinhado aos EUA. A hipótese de a chapa de oposição se eleger e os embargos econômicos acabarem, tornando menos grave o quadro de miséria daquela população, seria um desastre? E se de fato a situação piorasse, não haveria nada a fazer a não ser aguardar as próximas eleições? Nada mais contrarrevolucionário do que presumir que a nossa classe deve ficar refém do resultado das urnas e que é incapaz de aprender com seus eventuais erros e se auto-organizar para solucionar seus problemas.
Independente do candidato em que votem, ainda são proletários e pertencem à única classe com poder suficiente para derrubar o capitalismo em nível global. Por isso, na realidade brasileira o papel dos comunistas é ajudar a acolher esses trabalhadores venezuelanos e integrá-los sem qualquer distinção. A união entre trabalhadores venezuelanos e brasileiros deveria ser algo muito mais sólido do que o vínculo nacional e de cidadania que norteia as eleições em seus países de origem. ♟