A educação formal para as massas surgiu como uma necessidade do próprio capitalismo industrial. Eram os liberais – membros da corrente política que um dia defendeu a revolução burguesa – que debatiam entre si a necessidade de instruir a população em geral. Dois argumentos principais fundamentavam essa demanda histórica dos exploradores: ensinar sobre o mundo do ponto de vista da classe dominante e ao mesmo tempo preparar para a execução das tarefas do trabalho assalariado moderno. Primeiramente, os mestres apenas ensinavam os alunos e nada mais. Mas com as crises do capitalismo e da produção, agravadas principalmente pelo fato do proletariado ter aprendido a lutar eficazmente contra o processo de trabalho – hegemônico até a década de 1970 – que o explorava, os próprios proletários/estudantes precisaram ser ensinados a pensarem e refletirem sobre os problemas do próprio capitalismo. Assim, não é mais apenas o professorado que detém o monopólio do saber, mas o alunado também deve se inserir no processo educativo a fim de ampliar o repertório crítico da educação e fortalecer o leque de alternativas para melhorar o próprio sistema vigente. Porém, assim como em determinados momentos o proletariado se reconhece explorado e se rebela de forma organizada, os estudantes também passaram a nos ensinar para além de como melhorar o sistema, mas como lutar de forma radical e autônoma para modificá-lo.
Existe um número crescente de lutas acontecendo em inúmeras instituições de ensino por todo o Brasil. Esse movimento, que ganhou grande destaque em estados como São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, traz consigo uma forma de organização pouco explorada nas principais lutas com maior visibilidade. O movimento por si só é extremamente abrangente, não só nas suas diferentes conquistas nos diferentes estados e cidades, mas também nas diferentes formas de desenvolvimentos da luta. Porém, o mais interessante para destacarmos foi o surgimento de experiências autogeridas, surgidas por meio da necessidade de ultrapassar os limites já conhecidos das lutas convencionais travadas sob a tutela das instituições e suas entidades representativas.
O movimento dos secundaristas parece ter chegado ao processo de autogestão mais pela demanda prática surgida no percurso da luta concreta do que por meio de um raciocínio lógico resultante de acúmulos teóricos e de lutas. Seu desenvolvimento surgiu da busca por novas táticas de ação que não se restringiram aos problemas estruturais mas também englobaram problemas socioculturais vividos pelos estudantes.
Ao enxergarem a necessidade de protestar e lutar por melhores condições de estudo, os secundaristas perceberam que era necessário se organizar não somente para manter os estudos, mas ao mesmo tempo gerir a própria materialidade do alunado na escola (alimentação, limpeza, segurança, moradia, etc.). Ou seja, a própria manutenção geral do espaço ocupado. Esse novo tipo de organização tirou grande parte do poder do Estado e das entidades representativas diante das escolas ocupadas e gerou esboços de situações de duplo poder, na qual estudantes – com apoio de parte dos responsáveis e da comunidade em torno – eram capazes de manterem o funcionamento das escolas sem a necessidade de uma gestão externa. O Estado obviamente se viu extremamente preocupado com a perda de seu poder e tentou retomar o controle dessas instituições de ensino de forma violenta e, do ponto de vista jurídico, ilegal.
“O capitalismo está sempre tentando provar que não há alternativas, procurando fazer parecer natural aquilo que é, na verdade, um desenvolvimento histórico, e que portanto estaria sempre aberto a modificações.” — Clive Dilnot citando Barthes
Escolas autogeridas por estudantes permitem desmontar pelo menos duas grandes ideologias sobre o Estado, revelando o que sempre se pretende ocultar. A primeira é que com a ocupação do espaço físico das escolas pelos estudantes, o Estado perde, ainda que provisoriamente, propriedades privadas que lhe pertencem, isto é, a autogestão permite comprovar na prática que os espaços são propriedades do Estado e não públicos (propriedade social). Por tal motivo, a gestão estatal das escolas se dá de acordo com seus próprios interesses (e da indústria da educação), que não passam pelos interesses dos estudantes e menos ainda pelos do proletariado em geral. Decisões como fechar ou abrir uma escola são decisões que cabem apenas aos gestores do Estado. A segunda ideologia desmontada é a de que o Estado é indispensável para a vida em sociedade. O aprendizado da autogestão pelos estudantes é capaz de mostrar que, assim como o Estado não é necessário para gerir escolas, também pode não ser para gerir quaisquer outras instituições, permitindo desta forma a transposição dessa consciência para outras áreas da sociedade. Com suas lutas, os estudantes secundaristas têm mostrado a estudantes universitários e proletários que são necessárias outras táticas de luta, que passem por fora das formas burocráticas de representação como organizações estudantis (UNE, UBES, etc) e sindicatos. As ocupações das escolas mostram que, por outras formas, construídas na própria luta por aqueles que lutam, nossas batalhas podem resistir melhor e conquistar avanços.
Essas experiências tiveram e têm impactado de forma crescente Escolas técnicas e até mesmo algumas Universidades públicas, pois a tática utilizada pelos estudantes universitários até então, greves estudantis e ocupações de centros e reitorias, tem se mostrado insuficiente. Mas a grande questão em jogo não é somente a organização das lutas em busca de evitar fechamentos que reduzirão ainda mais um número já insuficiente de escolas e a sua já precária qualidade, mas sim avançar nas lutas e nas próprias pautas. Tal inversão – do defensivo que resiste ao ofensivo que conquista – assume particular importância na atual conjuntura da luta de classes em que nos encontramos: a quase totalidade das lutas proletárias estão limitadas a tentativas de não retroceder em conquistas obtidas no passado. Isto significa que não existem hoje avanços duradouros que possibilitem colocar a luta proletária no nível da ofensiva por seus interesses imediatos e históricos.
“A partir do momento em que a autogestão se inicia, se estabelece uma relação contraditória entre as relações igualitárias da luta e as capitalistas que continuam a existir no resto da sociedade.” — Lúcia Barreto Bruno
A escolarização tem um papel fundamental para o capital, que necessita de especialistas na indústria e no mercado de trabalho. A partir do momento em que o Toyotismo substituiu o Fordismo, a exploração do operário adestrado para fornecer apenas suas capacidades musculares teve que ser superada em favor da preparação e exploração de proletários intelectualmente qualificados e aptos para executarem trabalhos complexos, sob as coberturas ideológicas da “flexibilidade” e da “multifuncionalidade”. Aquelas pessoas que apenas estudam se encontram, em sua maioria, nesse processo como “força de trabalho de transição”, sendo preparadas onde já se reproduz a divisão social do trabalho diante da administração escolar e da organização do ensino em disciplinas, anos, níveis básicos e superior, etc.
A maioria dos estudantes e o conjunto do proletariado formam um só grupo social e devem lutar juntos pela melhoria de sua condição de vida frente às mudanças e desenvolvimentos do capital. Foi assim que, em maio de 1968, na França ocorreu uma das maiores greves gerais da história, com cerca de 9 milhões de grevistas, com a tomada dos distritos policiais pro-trabalhadores e estudantes e a paralisação total da bolsa de valores e da cidade de Paris. Essa consciência coletiva entre estudantes e o proletariado é uma das mais fortes armas contra o capital. Compreender que fazemos parte da mesma classe social abre o caminho para nos unirmos por uma causa comum a todos nós: o fim do capitalismo, dando lugar para uma sociedade de abundância e tempo livre. ♟