Em sua mais famosa obra, “O Capital”, Karl Marx traça um retrato preciso do nascimento do capitalismo na Inglaterra do final do século XIX, da exploração do proletariado e dos problemas sociais gerados por ele. Por seus baixos padrões de lucratividade, o capitalismo daquele período seria inaceitável atualmente. Sem qualquer regulamentação trabalhista, férias, jornadas de trabalho que giravam em torno de 14 a 18 horas de segunda a domingo (sendo que crianças poderiam trabalhar 10-12 horas por dia), em um ambiente insalubre e sem qualquer controle de segurança. Era normal operários morrerem em acidentes de trabalho, de doenças geradas pelo ambiente laboral ou mesmo de exaustão.
A partir da observação do funcionamento do capitalismo Marx formulou a crítica à economia política, na qual disseca a sociedade do capital: a busca pelo lucro, o maior possível, justificava qualquer ação por parte das corporações. Aqueles que não eram donos dos meios de produção estavam condenados a uma existência miserável, próxima da escravidão. É desta contradição que nasce a luta de classes moderna: proprietários e controladores (burgueses e gestores) contra quem vive do próprio trabalho (proletariado). Segundo Marx, a busca incessante do lucro e a luta de classes provocarão a destruição do capitalismo, por meio da revolução do proletariado. E os capitalistas entenderam isso perfeitamente e agiram para impedir que isso acontecesse.
Uma das maiores habilidades do capitalismo é seu poder de se reinventar sem nada alterar em sua essência: a exploração. Capitalismo industrial (taylorista e toyotista), capitalismo financeiro, monopolista, uberização, empreendedorismo individual, são apenas roupagens diferentes para garantir a sua continuidade, expansão e fortalecimento.
As chamadas revoluções industriais e a reestruturação produtiva modificaram o rosto do capital e também do único capaz de ser o seu algoz: o proletariado. Neste início de século XXI somos testemunhas de mais uma transformação: o quase desaparecimento das fábricas e dos operários clássicos. Poucos são os locais onde ainda encontramos grandes aglomerações de trabalhadores e a substituição do trabalho humano pela robótica é uma realidade em boa parte do mundo.
“… a alta rotatividade de pessoal caracteriza empresas que… já conseguiram incorporar na parte automatizada do processo de trabalho o savoir faire (a experiência) das anteriores… às quais bastam os empregados que saibam lidar com aspectos superficiais…” — João Bernardo
É com base neste fato que muitos teóricos – na verdade ideólogos do capitalismo – alardeiam o fim do proletariado, quando na verdade a massa dos explorados continua crescendo; apenas foram sendo levados para outros setores da economia. O setor de serviços é o que mais tem apresentado crescimento nos últimos tempos e vem absorvendo grande contingente de trabalhadores(as). Dentro dele, o telemarketing vem recebendo uma parcela considerável do exército de reserva de força de trabalho.
No Brasil, o grande aumento do segmento começou na década de 1990, juntamente com as privatizações de empresas estatais. Uma vez sob a propriedade dos capitalistas privados, que sempre querem “reduzir custos”, a(o) antiga(o) telefonista, cuja atividade era regulada pela legislação trabalhista, transmutou-se em teleoperadora(o), atividade sem lei protetiva própria e cujo salário é bem mais baixo.
O perfil deste setor do proletariado, existente no mundo inteiro, é concentrado na juventude, majoritariamente feminina. Mais recentemente vem absorvendo também força de trabalho de pessoas da chamada “terceira idade” que são obrigadas a retornar ao mercado de trabalho por não conseguirem se sustentar com suas aposentadorias. Estes(as) trabalhadores(as) normalmente têm em comum o fato de estarem adentrando no mercado de trabalho (primeiro emprego) ou terem permanecido desempregados por períodos superiores a 3 anos. Além disso, normalmente possuem contrato temporário e trabalham em regime de tempo parcial.
“Toda expressão que não seja ação, no sentido de que não contribua para esclarecer os problemas revolucionários atuais, se situa no interior do capital. […] O que contribui para a revolução não é nem a evocação do passado nem do mundo futuro, mas o esforço presente para enlaçar a realidade com ambos.” — Jean Barrot
Outra característica do setor é a alta rotatividade. Menos de 1% dos trabalhadores(as) em telemarketing exerce a função por período superior a 5 anos e, em torno de 70% sai antes de completar o primeiro ano.
Apesar de ser um dos setores de alto crescimento (especialistas preveem que o mercado de call center deve ter um aumento de 7,5% em 2018, com o faturamento de R$ 51,26 bilhões), o atendimento destas empresas no Brasil está entre os piores e mais precários do mundo. Quando ocorrem problemas que nos obrigam a ligar para o Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC) de alguma empresa, já se sabe que tem que estar munido de muita paciência, para não explodir ao telefone! O atendimento pode levar mais de uma hora, dependendo do caso. São pedidas certas informações repetidas vezes, a pessoa é transferida de um atendente para o outro como se fosse uma bolinha de ping-pong e, no final, às vezes, o problema não é resolvido. E quem acaba responsabilizado pelos problemas? Em quem é descontada toda a frustração pelo não/mal atendimento?
A profissão de atendente de call center – ou operador de telemarketing – está na lista das profissões mais estressantes do mundo. Dentre os fatores que justificam este título, podemos destacar a pressão psicológica à qual esta parcela do proletariado é submetida diariamente. Além de passarem o dia ao telefone – o que por si só já seria estressante – com uma pausa de 20 minutos para almoço e idas ao banheiro cronometradas, são obrigados a resolver problemas de empresas das quais não são empregados e não conhecem o funcionamento, mas naquela ligação representam todos seus erros e defeitos, tornando-se alvo da irritação e insatisfação dos clientes.
Como são proibidos de desligar o telefone, têm de ouvir toda sorte de xingamentos, enquanto repetem educadamente o que está no roteiro de respostas que são obrigados a seguir, não podendo responder por conta própria; são forçados a abrir mão do próprio cérebro durante a jornada de trabalho, ficando privados de qualquer tipo de autonomia.
Muitas vezes são contratados com a promessa de que receberão um “bônus” no caso de conseguirem cumprir as “metas”, normalmente inalcançáveis. O patamar irreal das metas, no entanto, não impede que os(as) supervisores(as) (espécie de feitor de escravos) pressionem os(as) atendentes para seu atingimento. E tem meta para tudo: de vendas, de cobrança, de número e até de tempo de atendimento. Para piorar, muitas empresas adotam o que é chamado de “política de retenção de clientes”, jogando para estes(as) trabalhadores(as) a responsabilidade de impedir o cancelamento de sua compra ou serviço.
O índice de adoecimento entre estes(as) proletários(as) é muito elevado. A exposição prolongada e ininterrupta a telas de computador é causa de problemas na visão, podendo ocasionar até cegueira, em casos extremos. Além disso, há LER/DORT por digitação, sem contar problemas causados por falta de ergonomia, uma vez que não é incomum trabalharem em cadeiras quebradas e mobiliário improvisado. Também são recorrentes os problemas de danos ao tímpano, voz, garganta e, principalmente, as doenças de ordem emocional.
Até este ponto, o da denúncia de suas condições de trabalho, chega a esquerda do capital. Contudo, é preciso ir além se quisermos organizar este setor do proletariado para lutar e transformar o mundo. Pensar e aplicar formas de organização flexíveis que sejam compatíveis com a alta rotatividade, identificar e paralisar aquela(s) atividade(s) que está(o) no centro da lucratividade dos patrões, articular trabalhadores que não sejam de call centers para que possam se solidarizar em tempo real com qualquer luta deflagrada por este setor, prosseguir o trabalho de formação política com quem for demitido visando acúmulos subjetivos para quando ingressarem em outras categorias do proletariado ou mesmo reingresso, manter alguma forma de vínculo entre os desempregados.
Estas são algumas iniciativas que hoje podem, e devem, ser tomadas para que este novo setor do proletariado consiga lutar por suas necessidades no imediato e adquira memória histórica para lutar desde já por uma sociedade livre da exploração de um ser humano por outro.♟