O mundo do trabalho vem sofrendo mudanças significativas no que diz respeito ao modo como os capitalistas estão intensificando a exploração do proletariado, aliando a sofisticação tecnológica do séc. XXI à brutalidade das condições laborais do séc. XIX. O exemplo mais emblemático é o do proletariado que busca sustento prestando serviços por demanda de aplicativos digitais.
Os serviços mais conhecidos e os que mais empregam hoje no Brasil são o de entregas e o de transporte de passageiros. Têm em comum trabalhadores precarizados que, desempregados ou visando um complemento na renda mensal, sujeitam-se a uma relação laboral sem proteção contratual nem previdenciária, com remuneração baixa e variável, expostos a vários tipos de violência e a acidentes, sem qualquer possibilidade de indenização. Trata-se, na prática, de uma economia baseada em “bicos” em que muitos “autônomos” se enxergam erroneamente como empreendedores ou “patrões de si mesmos”, quando na verdade estão a um passo do desemprego estrutural.
Os serviços de entregas, por exemplo, quando prestados por ciclistas, oferecem uma remuneração mensal que pode variar entre R$ 375,00 e R$ 992,00. Para conseguir esse valor máximo, que ainda é menor do que um salário mínimo, esses jovens (mais da metade têm entre 18 e 22 anos de idade) precisam trabalhar todos os dias da semana, em média 12 horas por dia, sem descanso, sujeitos aos perigos do trânsito e cientes de que se ficarem doentes ou se acidentarem estarão por conta própria. Boa parte dessa categoria ambiciona um dia comprar uma motocicleta para aumentar seus ganhos diários, principalmente porque as empresas de aplicativos vêm diminuindo o valor mínimo pago por corrida. Na ponta da precarização ainda há aqueles que sequer possuem bicicleta e se veem obrigados a alugar uma, por meio de outro aplicativo, a um valor médio de R$ 20,00 por dia. Segundo dados governamentais, cerca de 4 milhões de brasileiros prestam serviço de entrega por meio de plataformas digitais.
No que diz respeito ao serviço de transporte de passageiros, são mais de 1 milhão motoristas cadastrados, trabalhando por mais de 12 horas ou quantas forem necessárias para atingir uma meta líquida diária de aproximadamente R$ 250,00. Em uma realidade na qual os aplicativos estabelecem valores flutuantes para cada serviço e descontam uma taxa média de 25% do que é pago ao condutor, este ainda tem que arcar com o aluguel ou manutenção do veículo, combustível (cada vez mais caro), impostos e eventuais multas de trânsito. À medida que os ganhos líquidos diminuem a carga horária de trabalho aumenta, para muitos é como se morassem nos carros e apenas visitassem suas próprias casas.
No outro lado da relação de exploração estão as empresas donas dos aplicativos. Ao mesmo tempo em que vendem a ideologia do empreendedorismo individual a seus “colaboradores”, afirmam categoricamente que não são patrões de ninguém, que apenas fazem a conexão entre os consumidores e os prestadores de serviço, que esses são “livres” para fazerem o próprio horário e que dependem apenas da própria competência para serem bem avaliados pelos clientes. Pela falsa lógica dessas empresas seria possível concluir que esses trabalhadores seriam possuidores dos meios de produção (veículos) do serviço que vendem (transporte) e que os patrões exploradores seriam os consumidores que os contratam. Na realidade trata-se de uma forma perversa de extração de mais-valia por parte dos empresários da tecnologia, que se isentam de dar capacitação aos funcionários, controlam as remunerações com base em algoritmos incompreensíveis e imprevisíveis e sequer precisam fornecer os instrumentos para a realização do trabalho: tudo isso sem qualquer vínculo contratual de emprego. O aplicativo não se limita a conectar particulares que querem comprar e vender um serviço, ele recruta, remunera, controla, avalia e pune o trabalhador que se propõe a servi-lo, além de lucrar com a venda dos dados comportamentais que coleta dos usuários.
“Não parece que os empregos no setor da informação venham a absorver os operários da indústria com a mesma facilidade com que os empregos industriais absorveram os trabalhadores agrícolas no século passado. São necessários programas de formação maciços.” — Revista The Economist (28 de Julho de 1984)
Diante desse cenário no qual tais empresas e seus acionistas lucram bilhões e os trabalhadores dormem cada vez menos, os governos enxergam tal dinâmica com bons olhos já que essa expansão do trabalho precarizado serve para mascarar alguns resultados da economia. Se fossem uma só empresa, os aplicativos de transporte de passageiros e de entrega seriam hoje o maior empregador informal do Brasil, sendo que em 2019, apenas um deles foi responsável por 0,18% do Produto Interno Bruto.
Porém, esse modelo econômico baseado em plataformas digitais não é apenas um nicho de mercado, é algo que se expande cada vez mais, apresentando soluções mágicas para a burguesia que ela não poderia concretizar nos tempos das fábricas de modelo fordista e posteriormente toyotista. Afinal trata-se de um paradigma de produtividade no qual os custos da produção são transferidos quase que integralmente aos proletários, a gestão da exploração é feita de forma virtual e invisível. Além disso, esses trabalhadores são pulverizados e atomizados ao máximo em seus locais de trabalho, sem garantias trabalhistas, sempre à disposição de um possível chamado para uma nova tarefa e muitas vezes sequer se reconhecendo como explorados.
Parece lógico concluir que tal modelo tende a se alastrar rapidamente por vários ramos da economia como saúde, educação e tantos outros que a tecnologia e o proletariado permitirem. E para aqueles que acham que tal dinâmica é uma alternativa ao desemprego, é preciso ressaltar que as empresas mencionadas já estão testando veículos não tripulados e entregas por meio de drones. O futuro dirá o que a Inteligência Artificial nos reserva se permanecer em poder da burguesia.
“A integração dos ócios no capitalismo, porém, ocorreu em planos ainda mais profundos, e com repercussões sociais decisivas, na medida em que o tempo de lazer se converteu num tempo de formação da força de trabalho. (…) A tecnologia electrónica fornece o exemplo mais flagrante, pois sem a difusão súbita e maciça de variadíssimos jogos electrónicos teria sido impossível formar num tão curto período toda uma enorme quantidade de jovens aptos a laborar com a nova tecnologia.” — João Bernardo
Em oposição a tal precarização, têm ocorrido manifestações de motoristas por aplicativo em diversos países em prol de melhores condições de trabalho e aumento da remuneração. Pode significar o começo de uma resistência classista, ainda mais utilizando a tecnologia que os explora para aproximá-los. Ainda assim, parecem patinar em propostas como reconhecimento facial dos passageiros e instalação de câmeras nos veículos, que a princípio lhes traria mais segurança, mas, na prática, aumentaria ainda mais o poder de controle das empresas sobre seu trabalho.
Também há quem defenda a ideia de cooperativa de plataforma, em que os trabalhadores teriam seu próprio aplicativo. No entanto, isso os manteria presos à lógica de mercado, reproduzindo as relações capitalistas e tentando, em vão, competir com gigantes do setor que têm acesso à satélites e tecnologias complexas de armazenamento de dados.
É preciso compreender que a informalidade, a precarização e o desemprego não traduzem uma diminuição da importância do proletariado. São apenas elementos que indicam uma reestruturação das relações de produção que exploram a força de trabalho. Assim, a única luta possível deve se dar pela união sólida e autônoma desses trabalhadores contra as empresas que os reduzem a tais condições.
A questão que se coloca ao proletariado é: quem controla o trabalho? Pouco importa se a gestão se dá por um capataz de fábrica ou por um algoritmo, ambos estão a serviço do capital. Qualquer proposta que mantenha a ideia de o fruto do trabalho humano se tornar mercadoria não nos serve. Não se trata de ser contra as inovações tecnológicas, mas de acabar com o controle privado sobre elas e questionar para quê e a quem se prestam. Mas só o proletariado enquanto classe consciente pode arrancar tais tecnologias das mãos da burguesia e colocá-las a serviço da humanidade, que decidirá quais lhe são realmente úteis. ♟