Desde o resultado das eleições de 2018 e do começo do ano de 2019, o clima era de apreensão diante do novo governo federal eleito. Estávamos diante de uma chapa pura de militares do exército, alavancada na campanha pela figura do anunciado ministro da economia Paulo Guedes, que trabalhou na década de 80 na ditadura de Pinochet por encomenda do próprio governo chileno. Esse quadro, associado a declarações preconceituosas históricas e atuais do presidente Bolsonaro, foi o suficiente para criar-se um consenso retórico nas esquerdas de que estaríamos diante de um governo fascista.
O governo “fascista”
O governo fez o esperado no plano econômico, seguindo a requentada cartilha liberal e atacando em diversas frentes os recursos públicos de serviços básicos, de fiscalização e também do salário dos trabalhadores, tal como sucedeu na Reforma da Previdência (#BB42). Naquela altura, as bases mais “radicais” do governo, ligadas ao olavismo e ao fundamentalismo cristão, já reclamavam do governo pois sentiam que a famigerada “pauta dos costumes” estava abandonada. Quer dizer, o governo fazia, de acordo com os seus compromissos de classe, aquilo que deveria ser feito.
Após seguidos meses de tramitação ao longo de 2019, alguns ajustes e atritos superficiais com o Congresso e com parcela da cúpula do funcionalismo civil e militar, a Reforma da Previdência de Paulo Guedes foi aprovada sem maiores dificuldades. À diferença dos recentes confrontos no Chile e dos meses de greve na França, o governo federal brasileiro obteve sucesso na sua primeira batalha sem precisar lutar, sem sequer colocar em prática sua faceta repressiva, pois não houve resistência efetiva do outro lado.
As “resistências”
No plano geral do governo federal, todos os atritos e pequenos recuos se deram exclusivamente na arena institucional parlamentar ou jurídica, a maioria deles entre as direitas. Lembremos da agenda sindical de lutas contra a reforma da previdência. Foram alguns poucos dias de atos esparsos ao longo do ano, em vésperas de final de semana ou de feriadão. Ou seja, o sindicalismo “pretendia” derrubar um ataque violento fazendo aquilo que o calendário cristão brasileiro já faz: feriados prolongados.
Enquanto de um lado os cartazes e as redes sociais garantiam nomes descolados ao evento, 30M, 14J, etc. e as centrais sindicais continuavam cumprindo seu papel histórico de enganar os trabalhadores, agendando uma paralisação de 1 dia a cada dois meses, do outro, muitos governadores de “esquerda” prontamente bradavam a necessidade dos seus estados não ficarem de fora da mesma reforma da previdência.
Em 2020, ainda antes da pandemia, testemunhamos por vários domingos seguidos manifestações de apoio ao governo Bolsonaro. Já em quarentena, quando esse movimento persistiu nas ruas, radicalizando suas pautas nos cartazes, “Intervenção militar já!”; “Fim do STF!”; “Fechamento do Congresso!”; o máximo que a esquerda brasileira ofereceu foi um eloquente apoio ao sistema, uma defesa genérica e abstrata do conjunto de instituições democráticas tal como ele é.
Para completar a falsa resistência de 2019, em 2020 os aparelhos institucionais da conservação do capital decidiram se abraçar de vez. Na data histórica do 1º de maio, Dia do Internacionalismo Proletário, a CUT convidou FHC e Rodrigo Maia para ajudar a defender a democracia. Além desse mais do que simbólico 1º de maio, meses depois surgiram “movimentos espontâneos” na internet, como o #EstamosJuntos” (Caetano Veloso, Lobão, FHC, Felipe Neto, Mandetta, Laura Carvalho, Huck, etc.) e o “#Somos70porcento”, protagonizado pelo economista Eduardo Moreira, que vende cursos de investimentos financeiros para um público-alvo progressista.
O que é fundamental para a consciência proletária diante dessas frentes é perceber como elas surgem exatamente dias após os primeiros protestos das torcidas organizadas em São Paulo. Ou seja, quando qualquer setor do proletariado assume a dianteira, a social-democracia não pode aceitar nenhuma iniciativa autônoma dos setores explorados e precisa se colocar novamente como a única representante possível.
No mesmo sentido, os grandes protestos seguintes dos trabalhadores de aplicativos Brasil afora tiveram a sua pauta proletária sequestrada em favor da democracia. Foram transformados em “entregadores antifascistas” e o movimento foi direcionado a protestar contra o governo “fascista”, e em defesa da democracia — o mesmo sistema que os colocou em regime de brutal exploração da mais valia absoluta.
Ora, as lutas do proletariado de aplicativos já têm expressão internacional há anos e nenhum regime de trabalho se confunde com governos. A evidência de que estas frentes surgiram apenas para frear qualquer impulso autêntico de classe é que elas desapareceram logo depois. Seus sites estão sem atualização há meses.
“Num contexto como o atual, em que nenhuma opção parlamentar pode cumprir um papel progressivo do ponto de vista dos interesses do proletariado, no qual o próprio reformismo é um movimento sem nenhum futuro, qualquer apoio ao parlamentarismo, ainda que se justifique por motivos temporais, serve para aumentar a confusão política do proletariado.” — Grupo de Comunistas de Conselhos da Galiza
A farsa da farsa: eleições municipais
O petismo costuma avaliar outros políticos como “golpistas” devido aos seus votos no processo de impeachment de Dilma Roussef. Ao mesmo tempo, continua exigindo ser o protagonista da “esquerda” brasileira, enfrentando os “golpistas fascistas”. Porém, nas eleições municipais o PT se apresenta com as seguintes coligações: DEM (Maia) em 302 cidades, PP (Rodrigo Barros) em 333, PSDB (Doria) em 314, MDB (Temer) em 606, PSC (Witzel) em 193, PRTB (Mourão) em 48, PSL (ex-Bolsonaro) em 145.
Evidentemente essas coligações contam com a jura de fidelidade de outros partidos da “esquerda” nacional. Este exemplo não serve apenas para desmistificar o PT enquanto o representante dos trabalhadores, mas para apontar que bradar “fora fascistas” e “viva a democracia” apenas retrocede ainda mais o precário nível político de todos os partidos e sindicatos, já perfeitamente inseridos dentro da institucionalidade capitalista.
A justificativa para alianças dessa natureza é sempre a importância de impedir que a extrema direita ocupe todos os espaços do poder. É o velho e recorrente argumento de que é preciso mudar as instituições “por dentro”. Enquanto os reacionários manipulam o temor ao “comunismo”, para chegar e agora se manter no poder, a social-democracia, que quando tinha o proletariado em suas mãos falava em esperança, agora manipula o temor ao fascismo e busca convencer o proletariado mais uma vez de que ela é a autêntica representante dos oprimidos.
Essa armadilha é histórica e levou diversos movimentos ao enfraquecimento e a consequentes derrotas. A esquerda brasileira vem há seguidas décadas abrindo mão de posições históricas da classe e a cada dia se deslocando mais para a direita. Dessa forma, em função de um projeto específico de poder, o da classe dos gestores, essa esquerda tenta arrastar o proletariado para longe dos seus próprios interesses, diluindo os contornos de classe em pautas pluriclassistas, conferindo a estas últimas um caráter unificador incompatível com a realidade da divisão social do capitalismo.
“Toda vez que os proletários dependeram da democracia como uma arma contra o Capital, ela se transformou no seu oposto” — Jean Barrot/Gilles Dauvé, em O antifascismo é o pior produto do fascismo
Lições antigas e novas para o proletariado
As instituições sociais da conservação (educação, partidos, sindicatos, justiça, etc.) são tudo o que a esquerda do capital pode controlar. Uma vez que os seus membros são quadros técnicos qualificados, e não burgueses proprietários diretos, necessitam das instituições sociais preestabelecidas para poderem se inserir e se perpetuar enquanto estrato dominante da sociedade.
Hoje relativamente deslocados dos seus espaços de exercício de poder, passaram com novo vigor a ensinar todos a defender a democracia — para que sempre possam retomar o controle, com tranquilidade democrática, do mesmo regime que nos colocou e nos mantém exatamente neste cenário.
A ascensão da extrema-direita internacional e do bolsonarismo no Brasil podem gerar diversas lições para as lutas sociais e o movimento proletário. A primeira delas, como ficou evidente no Brasil em 2019 e 2020, é que o proletariado não pode contar para nada com a social-democracia e suas instituições da conservação. A próxima lição a caminho, envolta por uma névoa de retorno da democracia, é que Trump e Biden, Bolsonaro e Lula, têm muito mais em comum entre si do que com o proletariado: entre eles há apenas algumas contradições aparentes, mas entre eles e nós há uma única e antagônica.♟