Em fevereiro de 2023, dois trens operados pela Hellenic Train (subsidiária da italiana Ferrovie dello Stato), um de passageiros e outro de carga, colidiram frontalmente em alta velocidade na altura do vale de Tempi, tornando-se o maior acidente ferroviário da história da Grécia. No momento do choque, uma misteriosa explosão que pôde ser vista a quilômetros de distância foi seguida pelo descarrilamento dos vagões. O resultado foi a morte de 57 pessoas, majoritariamente jovens estudantes. Outras dezenas de passageiros e trabalhadores a bordo ficaram gravemente feridos. O presidente do partido Nova Democracia (ND) e primeiro-ministro da Grécia Kyriákos Mitsotákis, não hesitou em negar a responsabilidade pela colisão alegando ser fruto de uma “falha humana” e seu governo ligeiramente tomou medidas sistemáticas para ocultar as reais razões da catástrofe.
Dois anos depois, no segundo aniversário do acidente, a sociedade grega, já esgotada e sem perspectiva de justiça pelos mortos, inundou as ruas de mais de 250 cidades do país, com slogans como “não tenho oxigênio” e “nossas vidas antes de seus lucros”. As manifestações foram colossais, as maiores vistas desde a crise da dívida pública de 2010. Nesta edição iremos examinar o contexto desta convulsão social e o que podemos assimilar desta experiência para que possamos encontrar a saída para o nosso próprio labirinto.
Falha humana ou negligência do Estado?
Desde 2014, a União Europeia destinou aproximadamente € 700 milhões à Grécia para a modernização e melhoria de seu sistema ferroviário. Outros € 130 milhões foram reservados por meio do Fundo de Recuperação e Resiliência da UE, visando apoiar ainda mais esses esforços. Apesar desse apoio financeiro substancial, o Sistema Europeu de Controle Ferroviário (ETCS) continua sem implementação em um metro sequer das linhas. Além disso, o sistema ferroviário sucateado também carece de sistemas de controle remoto e sinalização, relegando todo o gerenciamento ao conjunto dos operadores ferroviários, que até este momento está operando com apenas 45% do efetivo necessário.
A resposta do governo à tragédia causou indignação, limitando-se à individualização da culpa ao prender o chefe de estação responsável pelo controle dos trilhos por homicídio culposo. Apesar das – já graves – suspeitas de corrupção, e do esquivamento de qualquer responsabilidade por parte das autoridades, a principal motivação dos protestos incendiários no país são as flagrantes tentativas de supressão das investigações e encobrimento de evidências, sobretudo acerca da gigantesca explosão desencadeada pelo choque, uma vez que parentes das vítimas temem que o governo grego e a empresa estejam em conluio para esconder a causa real da explosão.
“É uma vergonha que façam declarações sobre a segurança de nossas ferrovias. Peço que retire imediatamente! ” — Kostas Karamanlis, ministro dos transportes 8 dias antes da colisão
Ocultamento de evidências
Imediatamente após o acidente, ao invés de isolar o local, as autoridades gregas ordenaram uma limpeza completa da área. Os destroços foram removidos, até mesmo o solo foi escavado e substituído por cimento e cascalho sem nenhuma busca por restos humanos ou pertences dos passageiros. Isso foi contra todas as regras estabelecidas para lidar com cenas de acidentes, mesmo aquelas com muito menos vítimas, mas em linha com o que teria acontecido se o objetivo fosse destruir evidências do material inflamável. Além das atividades suspeitas no local do acidente, imagens de vigilância de 40 câmeras posicionadas em estações ao longo da rota do trem foram “acidentalmente” apagadas e registros de manutenção ferroviária foram alterados para encobrir problemas conhecidos pela Hellenic Train.
Outro fato agravante foram as intimidações e demissões enfrentadas por quaisquer indivíduos ou organizações interessadas em investigar o caso, com especial destaque à morte em circunstâncias misteriosas do filho de uma importante promotora envolvida nas investigações.
O Enigma da Explosão
Houve várias tentativas de perfurar o véu de desinformação lançado pela administração de Mitsotákis e identificar a origem da misteriosa bola de fogo de 80 metros de diâmetro e 12 segundos de duração. Um investigador forense contratado pelas famílias das vítimas alegou que 30 dos 57 passageiros que morreram sobreviveram inicialmente à colisão antes de perderem a vida em virtude do incêndio. Análises químicas encomendadas pelas famílias dos mortos no interior de um vagão parcialmente incinerado revelaram altas concentrações de xileno e outros hidrocarbonetos.
Se o transporte de combustíveis e solventes ilegais em trens de passageiros já não fosse criminoso o suficiente, uma reportagem do jornal Rizospastis do Partido Comunista Grego (KKE) revelou por meio de conversas entre dois chefes de estação da companhia ferroviária que grandes volumes de materiais bélicos da OTAN são transportados de forma desenfreada e sigilosa pelo país através das ferrovias. É mencionado que “as cargas da OTAN não param” e nunca recebem documentação sobre tais movimentos. Foram reveladas também autorizações para transporte de equipamento militar com um “trem completo, consistindo de até 30 vagões”. Esses transportes são realizados pela Hellenic Train em colaboração com outras empresas estrangeiras em nome do exército dos Estados Unidos. Somente entre novembro de 2022 e abril de 2023, foram registradas pelo menos 19 autorizações para transporte de equipamentos militares, que são caracterizados como “Transportes Militares Excepcionais”. Nas autorizações, apenas o peso e dimensões das cargas são registrados, sem constar nenhuma outra informação sobre seu conteúdo.
Embora ainda não haja provas conclusivas de que materiais bélicos foram transportados durante a colisão, isto explicaria a presença de xileno no local do acidente, uma vez que o solvente é utilizado para enriquecer combustíveis para aeronaves militares. Também explicaria uma controversa visita de oficiais da aeronáutica poucas horas após o desastre.
Lutas dirigidas ou espontâneas?
O incontestável esforço do governo Mitsotákis para impedir que este quebra-cabeça seja concluído serviu como um catalisador para a ação das massas indignadas. Dada a magnitude das manifestações no dia da greve geral, é difícil apontar um número estimado de participantes. É falado que em linhas gerais as únicas pessoas que não se juntaram aos protestos nas mais de 250 cidades em que ocorreram foram crianças e idosos. Uma fração mais enfurecida fez chover coquetéis molotov nas imediações do parlamento, enquanto a tropa de choque da polícia repreendia manifestantes de forma violenta e aleatória. Em Atenas, paredes de mármore eram quebradas e usadas como munição em embates com a polícia, caçambas de lixo incendiadas e barricadas formadas nas principais avenidas. As ruas tornaram-se um verdadeiro campo de guerra, assemelhando-se à grande onda de protestos de 2010 no país.
Convulsões sociais desta magnitude ocorrem de tempos em tempos de forma orgânica, em função de um acúmulo de opressões político-econômicas e contradições do sistema de produção capitalista, podendo desenvolver-se em um legítimo movimento revolucionário. Entretanto, tais revoltas podem também degenerar-se em movimentos reacionários como visto, por exemplo, nas Jornadas de Junho no Brasil, no movimento Black Lives Matter, e na Primavera Árabe.
Isto se dá em larga escala pela natureza espontânea de tais revoltas. O poder econômico e político da classe dominante lhe permite minar movimentos amplamente descentralizados de duas formas. A primeira, mais evidente, é externa, valendo-se da violência e repressão para suprimir protestos enquanto manipula a opinião pública através do controle dos seus veículos midiáticos e algoritmos. A segunda, mais velada, é interna dando-se através de infiltrações (em protestos e assembléias) buscando alterar a essência e a forma da revolta, recuperando-a gradualmente, como por exemplo propondo reivindicações mais brandas, mapeando lideranças e intimidando trabalhadores grevistas.
Mas isto não significa que seja necessário uma liderança que irá ditar e controlar os rumos do movimento, como partidos políticos e centrais sindicais. Estas instituições da conservação não dispõem das ferramentas necessárias para combater as investidas enérgicas das classes capitalistas, já que a manutenção da ordem em última instância é inerente às suas existências, estando sempre dispostas a fazer concessões às classes dominantes, conciliando o inconciliável e, sem exceções, enfraquecendo a luta. Vistos os limites das lutas espontâneas e do vanguardismo dos partidos e sindicatos, qual é a alternativa?
“A greve geral não pode ser decretada, segundo o humor dos dirigentes sindicais, como uma simples tática. Deve surgir das entranhas da classe operária, como forma de expressão da sua espontaneidade.” — Anton Pannekoek
Lutas autônomas
Como visto, a espontaneidade pode vir a se tornar uma armadilha para as lutas. Entretanto, é o gérmen de qualquer movimento revolucionário. Um proletariado consciente irá fazer evoluir uma luta espontânea em uma luta autônoma organizando coletivamente comitês de greve nas fábricas e assembléias de bairro recusando não apenas o capital, mas também as burocracias partidárias e sindicais. É neste estágio que o proletariado encontra-se pronto para travar a luta revolucionária, pois decidiu tomar seu destino em suas próprias mãos.
É importante ressaltar que as lutas proletárias conscientes também compreendem-se como lutas internacionalistas, uma vez que o adversário a ser superado não é um governo ou outro, mas a classe capitalista que subjuga os proletários a nível global. Dito isto, o movimento na Grécia deve conectar-se aos movimentos dos vizinhos turcos, sérvios e búlgaros, que estão sob contextos de luta similares. Em um mundo onde acumulam-se crises sobre crises, em um mundo onde é mais fácil imaginar o fim da vida na Terra do que o fim do capitalismo, é imprescindível que aprendamos as lições das lutas do passado para que os futuros (e presentes) embates sejam vitoriosos. ♟