Desde o ano passado, os dois pólos supostamente antagônicos que dividem o país já abandonaram as ruas e foram orientados, pelos partidos, centrais sindicais e empresariado, a concentrar suas energias em mal disfarçadas campanhas e suas eleições federais a caminho. Ao mesmo tempo, a imprensa tradicional ajuda a alimentar e ditar a pauta fechada em “Lava Jato, Lula, Temer e companhia”. Por outro lado, a própria esquerda do capital acompanha passivamente essa movimentação exclusivamente politicista e se contenta em ser uma comentadora crítica dos atos do judiciário brasileiro. Para aqueles que sobrevivem do seu próprio trabalho, mais precisamente do seu salário ou ainda de trabalhos informais por produção ou hora, tal cenário armado é um golpe severo nas suas condições de vida.
Por mais que os setores proletários da sociedade sejam mobilizados para se identificar com Lula, até mesmo com Bolsonaro, Luciano Huck ou o desistente Joaquim Barbosa, ou ainda a apoiar as operações policiais e jurídicas de combate à corrupção — a própria elite cuidando dos seus “excessos” — os reais problemas dos trabalhadores permanecem sendo a exploração diária, a moradia, o transporte, a saúde e a educação precárias. Não apenas de má qualidade, mas também insuficientes, são esses serviços básicos que se tornaram o alvo favorito dos capitalistas para ampliarem ou criarem novas formas de ampliação do lucro. Ou seja, enquanto joga-se futebol filosófico entre os times “foi ou não foi golpe”; “Moro persegue ou não o PT”; “Lula é ladrão ou herói”; e outras polarizações irrelevantes, é apenas o time dos capitalistas que segue vencendo diariamente.
Entretanto, é necessário atentarmos justamente para as brechas que o real insiste em nos apresentar. São diversos os ataques ao proletariado, quando já se discute apenas eleições, mas também são inúmeras as formas de luta e resistência que escapam à lógica eleitoral, partidária e sindical.
Nesse contexto, diante das inúmeras pautas que entram em cena, a mobilização é difusa ou inexistente. Em 2016 existia apenas um mote predominante, “Tchau, querida”, que conduziu manifestações mais numerosas do que “Diretas Já” 30 anos antes. Hoje há passividade diante dos ataques ao proletariado.
Contudo, quando manifestações potencialmente incômodas à agenda capitalista se impõem, todas as democracias estão preparadas para usar a força e a violência contra trabalhadores e manifestantes. Nesse sentido, a democracia possui a capacidade de recuperar os conflitos e lutas sociais, bem como integrar as lideranças em canais institucionais, renovando os quadros de gestores.
“A luta da classe proletária por sua emancipação social não é simplesmente uma luta dia-a-dia contra a exploração capitalista. Ela também se dá no interior da própria classe proletária, contra o constante renascimento de ideias capitalistas e ilusões reformistas.” — Maurice Brinton
Nesse ínterim é memorável a materialização da hidrelétrica de Belo Monte no Rio Xingu durante o governo Lula, culminando em uma das mais pobres periferias do país, Altamira, quando ribeirinhos e pequenos agricultores perderam suas casas ao assinarem com o dedo papéis que não eram capazes de ler para que a construção pudesse ser concluída sem “entraves” humanos. E também o caso da construção da hidrelétrica de Jirau, quando a Força Nacional foi enviada pela sua escolhida, Dilma Rousseff, juntamente com a CUT, para reprimir operários em greve no canteiro de obras de Belo Monte.
Em novembro de 2017, em Correntina, cidade do oeste baiano (polo do agronegócio), cerca de 500 trabalhadores rurais auto-organizados adentraram em dois latifúndios locais e destruíram aparelhos milionários de captação de água e de irrigação que estavam desviando a água do rio Arrojado e prejudicando o abastecimento de toda a cidade sob aval do governo de Rui Costa (PT). O petista mobilizou a polícia militar de todo o Estado para tentar identificar os autores do ato, garantindo que não pertenciam ao MST e referindo-se a eles como terroristas. Nos dias seguintes milhares de pessoas saíram às ruas na região em apoio aos trabalhadores, que por via da ação direta espontânea canalizaram uma demanda surgida em 2015.
É possível identificar uma série de conflitos econômicos de classe em todo o país. Existem projetos de reforma da previdência municipais e estaduais em curso, que encontram resistência e paralisações e protestos do proletariado desses locais desde 2017, como em Minas Gerais e São Paulo. Além disso, na cidade que é a capital econômica do país há também um interessante movimento de professores das escolas particulares, que estão interrompendo suas atividades profissionais nas unidades onde trabalham, contabilizando mais de 100 escolas com lutas, com registro de apoio inclusive de pais dos alunos. Já nas escolas estatais paulistanas, são notórias as fraudes de licitações e desvios de verbas para merenda, também não sem luta dos estudantes.
“Para a esquerda tradicional, o ponto de partida não é a luta de classes, mas a revolução. […] ela se caracteriza pela crença errônea de que se substituirmos as idéias falsas pelas verdadeiras, a realidade existente irá desabar. […] embora a esquerda saiba que não é a interpretação que importa mas a transformação, ela considera esta transformação não como um ato do proletariado, mas como um ato da vanguarda. […] ao explicar sua posição em relação à ‘passividade dos trabalhadores quando deixados a si mesmos’, torna-se claro que a prática dos trabalhadores está longe de ser o que essa esquerda crê que deveria ser […]. A realidade, assim, não está de acordo com o que a esquerda tradicional pensa. Em suma: essa esquerda vê a realidade de cabeça para baixo.” — Cajo Brendel
No sul do país, em Florianópolis, vale destacar a luta contra projetos de privatização/precarização de serviços básicos para a população, especialmente na saúde pública. Apesar dos 30 dias de greve dos servidores públicos municipais, sobretudo dos setores da saúde e educação (em torno de 70% paralisados), durante o feriado do dia 21 de abril, sábado, o prefeito da cidade usou a repressão e a força policial para garantir a aprovação do projeto de privatização disfarçada. Mesmo com o fim da greve, as manifestações e as mobilizações continuam.
Ou seja, a tarefa militante anticapitalista nesse momento continua a ser, e já de muito tempo, manter olhos, mentes e corações, com o foco nas lutas que colocam o trabalho em oposição ao capital, ao invés de priorizarem aquelas lutas que dividem os próprios capitalistas. Está evidente que a suposta atual divisão do país é um novo estratagema das camadas dominantes para continuarem atacando com maior liberdade e facilidade.
A história mostra que as classes capitalistas sempre se apresentaram divididas em muitas frações. No mínimo duas: uma com a face “brutal” e “feroz” e outra de face “piedosa” e “humana”. Se nos contentarmos em nos aliar com os poderosos menos poderosos, supostamente injustiçados, eles continuarão vencendo porque o trabalho proletário necessário continuará eternamente sendo adiado em nome do trabalho “possível”. ♟