A abordagem do conflito entre Israel e Palestina apresentada pela mídia pouco se concentra no processo violento de expulsão do povo nativo que marcou a fundação do Estado sionista – melhor compreendido pelo nome Nakba, ou catástrofe palestina. Muito da cumplicidade mundial com a ocupação da Palestina está na aceitação da narrativa que trata a expulsão de seus habitantes como fato de guerra, pouco importante frente à busca do povo judeu por um lar que o protegesse da perseguição nazista. Existe ainda a versão que reforça que o conflito teria florescido a partir do âmbito espiritual, resultado das diferentes concepções de mundo das crenças religiosas entre muçulmanos, cristão e judeus. No entanto, as sementes que o cultivaram são objetivas e muito concretas.
As origens do sionismo
Na segunda metade do séc. XIX, diante do antissemitismo crescente na Rússia e da situação de inferioridade em que se encontrava a maioria dos hebreus em vários países da Europa, representantes da cultura judaica começam a divulgar a necessidade deles se constituírem enquanto nação. Para viabilizar a ideia, criou-se uma espécie de diretório, liderado pela elite hebraica, cujo objetivo seria o de criar um lar seguro e inviolável para o excedente de judeus que viviam como proletários nos diversos países, considerados um “fardo” para os cidadãos nativos.
Em outras palavras, o primeiro passo seria o de separar a elite judaica do seu proletariado. Caberia a ela organizar-se para criar um refúgio para os judeus pobres cujo excesso vinha trazendo problemas sérios àquela elite em processo de integração na sociedade russa. Pouco importa onde este lar seria localizado ou se nele já estivessem morando outros povos. O essencial era produzir uma dupla solução para a questão judaica: de um lado, a emancipação das camadas mais altas no interior de cada país e, de outro, a criação de uma pátria para o grande contingente de pobres, desempregados, artesãos e operários judeus; um desafio tanto para os russos, como, sobretudo, para os que buscavam se emancipar. Se o problema era o alto número de proletários e proletárias do povo hebreu, a saída é, literalmente, exportá-lo para bem longe. Com alto índice de desemprego e o consequente avanço da miséria, o Czar, para afastar as críticas de seu governo, responsabilizou os judeus, com o discurso de que além de ocuparem o lugar dos russos na produção ainda os exploravam por meio do comércio e da usura. Além disso, diante das greves do proletariado judeu, muitos rabinos comprometidos com a elite judaica condenaram estes trabalhadores por descumprirem os preceitos de Abraão (segundo os quais a pobreza e a riqueza são determinações divinas) auxiliando inclusive as forças policiais czaristas a prenderem os líderes operários. Nesse momento da história está claro que não existe uma identidade de “povo” judeu e sim, pessoas que apesar das semelhanças culturais, religiosas e linguísticas estão divididos em duas classes que se opõem deforma inconciliável.
Era preciso agir com urgência e dar forma ao ideal abstrato da volta à Jerusalém. Assim os preceitos do sionismo passaram a ser cada vez mais reforçados nos rituais religiosos e aos poucos ganharam força entre as camadas mais pobres da comunidade judaica. Em 1897, no congresso em Basiléia, do qual participaram em torno de 250 representantes da elite judaica de 24 países, ficou estabelecido que a Palestina seria a morada do povo hebreu, onde iria florescer a nação sionista. No entanto, o estado judeu na Palestina não exigiria que a elite judaica bem estabelecida na Inglaterra, França, Alemanha, dentre outros, se mudasse para lá. Para a Palestina só partiriam aqueles que tivessem a certeza de que iriam melhorar sua sorte: primeiro os desesperados, depois os pobres, os remediados e, por fim, os ricos, se assim desejassem. A migração para Palestina foi apresentada à comunidade judaica como um movimento que possibilitaria uma ascensão de classe. Por outro lado, o fato de a população palestina à época ser de aproximadamente 700 mil pessoas, das quais 35% viviam nos principais centros urbanos onde se desenvolviam intensas atividades comerciais, foi completamente ignorado. Como o que determina os desdobramentos da história é o desenrolar das lutas e dos interesses de classe, incentivados pelas excelentes ofertas feitas pela elite judaica internacional, os grandes proprietários árabes num período de 30 anos venderam cerca de 400 km quadrados do território palestino, onde foram instalados cerca de 65 mil judeus. Assim teve início o processo de formação do Estado de Israel em terras palestinas, oficializado em 1948, efetuado à custa da expulsão de 800 mil palestinos, à destruição de mais de 500 vilas e à realização de pelo menos 30 massacres.
Antissemitismo
O holocausto judeu perpetrado por Hitler é inquestionável. Mas como um governo conseguiu angariar o apoio de parcela significativa da população alemã para um processo tão cruel de perseguição de um grupo pertencente a uma determinada religião?
Esse sentimento de aversão aos judeus, chamado de antissemitismo, tem suas origens séculos antes da ascensão do nazismo. Pelo menos desde o séc. VIII os judeus eram proibidos de possuir terras, de exercer certas profissões e de viver onde bem quisessem. Uma das poucas ocupações franqueadas aos judeus era a de agiotagem, já que os cristãos eram proibidos de praticar a “usura”. E como Shakespeare ilustra em O mercador de Veneza, o agiota judeu acabou se tornando uma figura odiada. Ao longo de toda idade média os então chamados hebreus participavam ativamente da vida cultural, política e econômica das regiões onde moravam. Todos os setores da sociedade se relacionavam com eles e utilizavam seus serviços, e assim os hostilizavam. Era comum a nobreza confiar aos judeus a tarefa de cobrança de tributos. Eram eles que também lhes forneciam artigos de luxo e empréstimos em dinheiro quando necessitavam financiar expedições comerciais ou militares. Os artesãos e camponeses os viam como representantes do senhor feudal, que não hesitavam em usar a força na atividade de cobrança dos impostos, muitas vezes emprestando o dinheiro a custos extorsivos para que pudessem quitar suas obrigações. Evidentemente, quanto maior era essa pressão e o peso das dívidas, maior era o ódio pelos judeus. A nascente burguesia local, tanto comercial como financeira, os identificava como um concorrente indesejado e um obstáculo à consolidação de suas atividades. Aí está a base material que, em diferentes momentos da história, foi utilizada para fomentar e consolidar o sentimento de aversão aos judeus.
“Do exterior somos inclinados a acreditar que a Palestina hoje é um país quase completamente vazio; um deserto onde cada um pode comprar tantas terras quanto desejar. A realidade é bem outra. É dificil encontrar terras que não sejam cultivadas…” — Achad Ha’am – judeu imigrante da Ucrânia
O Estado de Israel
Em 1947 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou um plano de partilha da Palestina, recomendando a criação de um Estado árabe independente e um Estado judeu. Jerusalém, cidade considerada sagrada por muçulmanos, judeus e cristãos, ficaria sob controle internacional. A divisão propunha que os muçulmanos ficassem com 45% dos territórios, embora sua população fosse cerca de três vezes maior. Os judeus ficariam com 55%, o que incluía a maior parte das terras férteis. Eles aceitaram a proposta, enquanto os palestinos, que já viviam na região antes do fluxo migratório, rejeitaram. Para demonstrar para à comunidade internacional o quão justa era sua proposta a ONU utilizou o conceito de transferência”, um eufemismo que esconde uma estratégia política: a expulsão dos palestinos, considerados uma população remanescente, para fora de sua terra natal pelos meios que fossem necessários para abrir espaço para a formação do Estado de Israel.
Após o fim do mandato britânico na Palestina, em 1948 Israel declarou independência. A criação do estado gerou reações imediatas: no dia seguinte, Egito, Jordânia, Síria e Iraque invadiram o novo território, dando início a primeira guerra árabe-israelense. Após o fim da guerra, Israel ocupou uma grande parcela dos territórios palestinos, reduzindo pela metade o que havia sido definido pela ONU como terras do Estado árabe.
Em 1967, ocorreu a batalha que causou as mudanças mais drásticas na região. A chamada Guerra dos Seis Dias representou uma vitória esmagadora de Israel frente à coalizão árabe. Após o confronto, Israel passou a ocupar a Faixa de Gaza e a Península do Sinai, localizadas no Egito; a Cisjordânia, incluindo a parte oriental de Jerusalém, na Jordânia; e as Colinas de Golã, na Síria. Neste período, cerca de meio milhão de palestinos fugiram da região.
Israel combina fascismo, racismo, extremismo de direita, apartheid e supremacia racial em seu modus operandi, o que leva muita gente a comparar o regime ao Apartheid na África do Sul. No entanto, na África do Sul o opressor nunca usou aviões de combate e artilharia para bombardear os oprimidos que viviam nas cidades. Israel fez e continua fazendo isso.
Recentemente forças israelenses deliberadamente atingiram torres e prédios residenciais, deslocaram residentes palestinos e causaram devastação na infraestrutura de distribuição de água e energia elétrica do território sitiado. 1.800 unidades habitacionais foram completamente destruídas por Israel durante seu último ataque contra civis no território bloqueado, incluindo cinco blocos residenciais no meio da Cidade de Gaza, um povoado densamente povoado nessa área. Quase 17.000 outras casas foram danificadas e mais de 120.000 palestinos foram, assim, deslocados à força de suas moradias. Impossível ver as imagens mostradas na mídia e não associar imediatamente a impressionante semelhança com as cenas de 11 de setembro de 2001, quando as Torres Gêmeas em Nova Iorque foram derrubadas. Naquela ocasião o mundo parou e a comoção foi global. Agora nada parou, a vida seguiu sua normalidade como se tudo fizesse parte de um roteiro esperado. O extermínio da população palestina está naturalizado.
“O esvaziamento total da população nativa da Palestina em 1948 não foi uma coincidência de guerra. Foi o resultado de uma combinação de políticas cuidadosamente planejadas e implementadas progressivamente ao longo de várias décadas.” — Daud Abdullah
Resistência palestina e solidariedade internacional de classe
O internacionalismo fez parte da resistência palestina desde o seu início, quando outras nações árabes entraram no conflito em apoio à causa palestina. Apesar da cortina de fumaça religiosa, o principal motivo do apoio das burguesias árabes era evitar a perda de controle sobre uma região estratégica política e economicamente. Enquanto isso, o proletariado palestino lutava para não perder sua casa, sua subsistência, enfim, sua vida. Nessa luta aqueles que estavam organizados, como por exemplo na OLP, uma organização policlassista, precisaram se refugiar nos países vizinhos.
Brasil e Israel possuem relações históricas, desde o apoio brasileiro à fundação do Estado sionista, passando pelo apoio Israelense à ditadura cívico-militar brasileira (e outras em toda a América Latina), fornecendo treinamento e tecnologias militares. Atualmente as aproximações entre os países se aprofundam ainda mais no governo de Jair Bolsonaro. Trocas de armamentos de alta letalidade e mecanismos de vigilância, convênios com empresas israelenses, acordos econômicos, relações bilaterais, troca de embaixadas e o apoio público do presidente ao então primeiro-ministro israelense de extrema-direita, Benjamin Netanyahu, e vice-versa. Além disso, hoje o Brasil está entre os cinco maiores importadores de tecnologias militares israelenses no mundo. Tanto em nível nacional quanto estadual, treinamentos, táticas e tecnologias desenvolvidas em Israel e testadas no povo palestino são utilizadas em nosso país para aprofundar a militarização da nossa sociedade e promover repressão nas periferias por todo o Brasil.
Assim como os povos originários das Américas foram despojados de suas terras e riquezas, o Sionismo, que tenta dizimar os palestinos, é a versão mais assustadora e moderna destes colonizadores que um dia chegaram em barcos de madeira em nossos territórios. A luta palestina deve ser também contra as classes capitalistas árabes e sem confiar em qualquer Estado: árabe ou não. Toda solidariedade internacional deve impulsionar o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), fortalecer os palestinos na linha de frente em Gaza e na Cisjordânia. Exemplo recente foi dado pelos estivadores italianos, que sob a palavra de ordem “o porto de Livorno não será cúmplice do massacre do povo palestino” bloquearam um navio com carregamento de armas destinadas para Israel. A solidariedade proletária com os palestinos passa por impedir a fabricação e o envio de armas, e em cada país forçar os governos nacionais a enviarem ajuda – alimentos, remédios – e também adotar políticas que aliviem o sofrimento da população – linhas de financiamento para a (re)construção de moradias, implantação de saneamento básico, sistema de saúde preventivo e curativo, construção de estabelecimentos de ensino, e inaugurar uma nova intifada que una os palestinos de todo mundo na luta pela soberania e autodeterminação, para destruir o sionismo e o estado de Israel, e construir uma Palestina laica, não-racista e livre do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo.♟