Importação de médicos e a solidariedade de classe proletária

Importação de médicos e a solidariedade de classe proletária

As manifestações populares de junho de 2013 abordaram necessidades há muito sentidas pelo proletariado brasileiro. Entre elas estavam problemas de saúde pública, como a dificuldade de acesso a serviços de saúde nas periferias urbanas e áreas rurais. A resposta governamental mais destacada na área da saúde foi a implantação do Programa Mais Médicos (PMM) que resultou – dado o baixo interesse dos médicos brasileiros em participar – na contratação massiva de médicos estrangeiros, trabalhadores imigrantes temporários em caráter pouco convencional.

Embora não seja necessário ser estrangeiro para participar do PMM, são estes os mais interessados até o momento, principalmente cubanos: até o final de 2013 cerca de 5.200 dos 6.600 médicos que estavam atuando no programa provinham da ilha caribenha.

Pesam contra o interesse dos médicos brasileiros em participar: a falta de vínculo empregatício e proteções trabalhistas, caráter de trabalho temporário, pouca liberdade de escolha onde trabalhar, condições de trabalho desconhecidas e em geral precárias. Apesar de um salário que permite viver adequadamente. Já a polêmica técnica na área se inicia no processo de incorporação destes médicos. Todos os países que adotam a importação de médicos em situação não emergencial integrada às políticas de saúde realizam provas de acreditação e de proficiência da linguagem. No Brasil isso tradicionalmente ocorre através do Revalida, mas nesta situação o governo brasileiro julgou desnecessário e, inclusive, retirou do Conselho Federal de Medicina (CFM) a responsabilidade pelo registro destes médicos. O trabalho deles ocorre em regime de intercâmbio, com orientação do Sistema Universidade Aberta do SUS e registro direto no Ministério da Saúde.

Para além das questões técnicas, o trabalho de imigrantes em busca de melhores condições de trabalho e renda há tempos traz questões inerentes ao proletariado. Já no século XIX, Engels, ao analisar as condições da classe operária na Inglaterra, estudava a migração de irlandeses para aquele país e o preconceito criado entre o proletariado nativo. Um preconceito que reside na ideologia de que os baixos salários e piores condições de trabalho a que estes imigrantes se submetem aumentariam a concorrência pelo “melhor emprego” e gerariam mais desemprego.

A crise, por si mesma, não leva à derrubada do capitalismo, a menos que a luta de classes – aguçada por aquela – arraste consigo a derrubada do sistema. Contudo, isto não depende tanto da situação econômica quanto da maturidade revolucionária da consciência de classe proletária.” — Paul Mattick

Os médicos que participam do PMM recebem cerca de 10 mil reais mensais, exceto os cubanos, que repassam cerca de 75% para o governo de Cuba. Pouco menos dos cerca de 25% que restam vão para uma conta pessoal cubana e sobram aproximadamente 1.400 reais para desembolso imediato, cerca de 2 salários mínimos, muito abaixo da média de rendimentos dos médicos no Brasil. Como se não bastasse a dupla exploração pelos Estados brasileiro e cubano, a sua capacidade técnica é avaliada por supervisores, enquanto sua produção e seu processo de trabalho são controlados de perto pelos coordenadores das unidades de saúde onde trabalham. Além disso, seus colegas médicos brasileiros (possíveis companheiros de luta) estão representados por entidades de classe (CFM, CRMs e sindicatos) descontentes com a sua entrada no país por motivações ideológicas, culturais e econômicas. Nota-se, portanto, os dilemas para prestar solidariedade de classe com estes trabalhadores, os quais possuem um vínculo de trabalho frágil e que, a qualquer sinal de inconformidade política (por parte deles), podem ser devolvidos ao seu país e ainda submetidos a outras sanções no regresso.

A partir destas considerações sobre as relações de trabalho dos cubanos, entende-se porque algumas prefeituras chegam a demitir médicos brasileiros antes contratados por regimes de trabalho convencionais para incluir médicos do programa. Embora contra as regras do PMM, que deveria ser voltado para áreas sem interesse de médicos após a realização de concursos públicos, esta atitude de prefeituras demonstra que se está diante de mais um filão para a acumulação capitalista e a vantagem que relações de trabalho precarizadas representam para os gestores. O PMM resolve vários problemas de uma só vez para eles: se houver alguma luta econômica, sindical ou mesmo social das populações onde estes médicos trabalham que entrem em contradição com os gestores (municipais, estaduais ou federais), basta cortar o vínculo. Vínculo o qual tem suas regras, porém muito mais frágil que um vínculo trabalhista.

Entretanto, o PMM não é apenas importação de força de trabalho médica passiva. O objetivo declarado pelo governo federal seria melhorar a saúde pública ao levar médicos a áreas antes sem assistência. Portanto, é preciso analisar, antes de tudo, se é de mais médicos que as populações dessas áreas mais necessitam.

A desmistificação do imperialismo e a erradicação do nacionalismo são um poderoso passo adiante, um tremendo incremento na consciência, para o desenvolvimento do proletariado militante.” — Herman Gorter

Essas populações sem médicos são as mesmas sem saneamento básico e outras necessidades desprezadas pelos capitalistas no Brasil, apesar de solucionadas no capitalismo europeu e estadunidense. A figura ideológica do médico como detentor da saúde pode apaziguar o descontentamento em alguns locais, mas não resolverá problemas estruturais ali existentes.

Por que os escassos recursos em saúde foram investidos desproporcionalmente em uma medida de tão baixo impacto em termos de saúde pública, no lugar de ampliar o acesso ao saneamento básico, ainda restrito a 54% dos lares brasileiros? Algumas respostas possíveis a essa opção podem ser a visibilidade eleitoreira de prover médicos, cooperação internacional com vistas a investimentos econômicos em Cuba por empresários brasileiros e a formação de uma força de trabalho passiva às intervenções estatais na saúde da população. Em qualquer delas, o interesse do capital estaria garantido.

Assim, resta ao proletariado brasileiro prestar toda a solidariedade de classe a esses trabalhadores cubanos, aproximando-os das lutas espontâneas que ocorram em seus locais de trabalho. Fornecer os meios necessários para encorajá-los a atuar nesse sentido deve estar em pauta ao mesmo tempo em que, no contexto do SUS e da atenção primária brasileira, insista nas mudanças via organização nos locais de moradia. Sempre que possível reforçar pautas e temáticas que propiciem que trabalhadores da saúde e demais trabalhadores residentes nas localidades lutem juntos. A atuação nos Conselhos Locais e Municipais de Saúde pode ser uma forma de organizar as lutas na área da saúde, porém com os seguintes cuidados: não deixar que a organização autônoma para esta atuação seja absorvida pelo Estado; não se limitar à área da saúde, compreendendo-a inserida no contexto de classe e sem torná-la o único meio de levar as demandas por saúde. ♟