Lei de Segurança Nacional: armadilhas e ilusões

Lei de Segurança Nacional: armadilhas e ilusões

No dia 16 de fevereiro de 2021 o STF determinou, por unanimidade, a prisão em flagrante do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) com base em vários artigos da Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983). Três dias depois a prisão foi confirmada pelo Plenário da Câmara dos Deputados por maioria de 364 votos. Porém, além de ser um fato atípico para a democracia brasileira, esse episódio tem muito a revelar sobre a natureza das forças políticas institucionais das quais o proletariado vem se tornando refém.

A LSN e a democracia

Uma das críticas mais comuns a essa lei é o fato de ter sido criada na ditadura civil-militar (1964-1985) e seu conteúdo não ser compatível com a Constituição de 1988, tendo sua inconstitucionalidade sido defendida desde então por vários setores da socialdemocracia. Mas o que deve ser notado com atenção é que ela foi promulgada em dezembro de 1983, no apagar das luzes da ditadura, quatro anos após a Lei da Anistia e já no fim de um processo de abertura política “lenta, gradual e segura” iniciado quase dez anos antes, mas que então se deparava com um movimento operário capaz de parar os parques industriais do país. Como a ditadura nunca precisou de leis para promover repressão política a LSN foi criada pelos ditadores e seus parlamentares pensando na democracia que estava por vir – prevendo crimes que, em sua visão, lesam o regime representativo democrático -, ou seja, ao ler seus artigos é possível entender como aquele grupo político achava que deveria funcionar uma democracia.

Confirmando tal lógica, o STF determinou a prisão do referido deputado de extrema-direita utilizando-se de dispositivos que preveem punição a quem fizer propaganda pública de processos violentos ou ilegais para a alteração da ordem política ou social, bem como a quem incitar a subversão da mesma, entre outros como caluniar ou difamar o presidente da suprema corte. Na prática o deputado em questão promoveu uma série de ofensas e ameaças a determinados ministros do STF e as publicou na internet, mas a decisão que embasou sua detenção fez questão de afirmar que a atual Constituição não permite a propagação de ideias contra a ordem democrática e constitucional nem manifestações visando o rompimento do Estado de Direito.

Assim, embora tenha sido utilizada para punir um ideólogo do fascismo, consolida-se pela via democrática um instrumento suficiente para reprimir futuras lutas proletárias que minimamente repitam o que já foi feito nos períodos de ascensão de sua consciência de classe. Estão agora validados pela ordem democrática vigente artigos que preveem prisão a quem fizer propaganda pública de luta violenta entre as classes sociais e a quem a distribuir ou redistribuir tal conteúdo de forma ostensiva ou clandestina por meio de panfletos e boletins, com pena aumentada em um terço se isso ocorrer em local de trabalho.

Se a atitude reiterada daquele parlamentar não fizer parte de algo maior e orquestrado entre as instituições do capitalismo para criar essa oportunidade de retrocesso, ao menos terá servido para mostrar mais uma vez o comportamento contra-revolucionário da esquerda do capital com representação na Câmara, já que os deputados de PT, PSOL, PCdoB, PDT e PSB votaram a favor da manutenção de uma prisão com base nessa lei, que, além dos absurdos já citados, prevê, por exemplo, a incomunicabilidade do indiciado preso por até cinco dias. Até parece que a esquerda liberal “esqueceu” que para cada um pertencente à extrema direita que for punido, existirão vários militantes que lutam pela transformação social que serão alcançados pelas garras da LSN ou outra coisa que seja colocada no seu lugar com a mesma finalidade.

Em resposta, no mês seguinte os parlamentares de extrema-direita desarquivaram um projeto de nova lei de segurança nacional, de 2002, que pretende revogar a lei atual e incluir no Código Penal um novo título, que consistiria em dez crimes contra o Estado Democrático de Direito (PL 6764/02). Após deliberações, o texto já foi aprovado na Câmara e aguarda para ser votado no Senado, e seu conteúdo parece dar uma repaginada democrática na antiga lei, ou uma versão mais adaptada ao séc. XXI, com várias possibilidades de armadilhas interpretativas em aberto.

O Estado de Direito mais tolerante inscreve na lei a possibilidade de suspender os direitos democráticos no interesse superior da democracia. Em caso de risco à ordem pública, policiais e juízes farão o maior uso possível do arsenal repressivo existente. Se a lei não for suficiente, os decretos a complementarão, e se necessário aprova-se outra.” — Karl Nesic e Gilles Dauvé

Democracia como instrumento

A resposta política mais significativa a essa prisão de um deputado bolsonarista, no entanto, foi uma série de prisões e indiciamentos que se seguiram com base na LSN, mas dessa vez contra pessoas que se manifestaram publicamente contra Jair Bolsonaro. No dia 04 de março um jovem foi detido em Uberlândia-MG em virtude de uma mensagem no Twitter que fazia piada com a ideia de assassinato do presidente. Dez dias depois, o youtuber Felipe Neto foi intimado a depor por ter chamado Bolsonaro de genocida. Em 31 de maio, um professor de Goiás foi detido pela polícia militar e encaminhado à polícia federal por se recusar a tirar uma faixa do capô de seu carro na qual se lia “Fora Bolsonaro Genocida”.

Ressalte-se que Guilherme Boulos (PSOL) e Ciro Gomes (PDT) também viraram alvos pelos mesmos motivos. Só no atual mandato presidencial já foram abertos mais de 77 inquéritos fundamentados nessa Lei. Desde as jornadas de 2013 em que a socialdemocracia perdeu as ruas – bem como sua utilidade política para o capital – e a extrema-direita se apresentou como gestora em potencial para o capitalismo no Brasil, tem sido possível observar instituições estatais se tornarem mais totalitárias, de forma ostensiva e democrática, quase sempre com protagonismo das Forças Armadas, que já em 2014 iniciaram em seus quartéis a campanha de Bolsonaro para 2018.

Para citar alguns exemplos, em 2017 os crimes dolosos contra a vida de civis, praticados por militares, passaram a ser julgados pela justiça militar e não mais pela justiça comum. Em abril de 2018, por meio do Twitter um general (representando vários outros) intimidou em rede nacional o STF a não conceder o habeas corpus que permitiria que Lula participasse das eleições daquele ano. Em 2019 o então Ministro da Justiça Sérgio Moro chamou os policiais militares amotinados no Ceará de heróis num claro recado às PM’s do resto do país. Mais recentemente o General da ativa Eduardo Pazuello foi absolvido por seus pares após participar ilegalmente de ato político ao lado do presidente e foi instaurado sob esse processo um sigilo de cem anos com base na Lei de Acesso à Informação. Alguns dias antes, a polícia civil do Rio de Janeiro já havia imposto sigilo de cinco anos sob a operação que resultou na chacina de 28 moradores de Jacarezinho.

Por vias democráticas os militares chegaram ao poder e já ocupam mais cargos do que na época da ditadura, além das verbas que controlam e dos privilégios legais que estão criando para suas corporações e para as polícias, cada vez mais partidarizadas. Parecem estar conseguindo criar uma democracia para chamar de sua, como sonhavam à época da criação da LSN, ocasião em que saíram de cena (o que não parece estar novamente em seus planos).

A democracia não é um entrave para o burguês, mas sim o dispositivo mais apropriado: a concorrência política e econômica oferece mercadorias e capitais de que precisa. Para o proletário a democracia é uma contradição: ele não pode agir (mesmo enquanto reformista) sem se auto-organizar, mas se ele permanece no terreno capitalista, essa auto-organização cedo ou tarde se decompõe.” — Karl Nesic e Gilles Dauvé

Para além do jogo democrático

O proletariado com consciência de classe sabe que não deve existir lei para proteger a segurança do Estado ou da nação, pois os capitalistas sempre estiveram dispostos a derramar sangue proletário para fazer isso. Qualquer lei nesse sentido implicará futuramente um pacto com o terrorismo de Estado.

Enquanto para o atual governo a democracia é mero instrumento, a socialdemocracia a enxerga como algo sagrado e já começa a se articular em frentes amplas para defender a continuidade de existência dessas instituições, mostrando mais uma vez que seu compromisso nunca foi com os explorados. Diante dessas disputas entre capitalistas precisamos primeiramente impor as nossas pautas de classe para nos diferenciar disso tudo e resgatar nosso protagonismo, pois as ilusões da democracia já fragilizaram demais a subjetividade dos proletários.♟