Um grupo de homens e mulheres lutam juntos, quando uma voz se levanta e lança uma acusação. Não há espaço para defesa ou questionamento, apenas silêncio e desconforto. Não há julgamento. Apenas condenação. A cena narrada caberia bem a um filme sobre o fascismo onde entre os jovens reunidos havia um infiltrado. No entanto, foi o que aconteceu há alguns anos, quando uma acusação de “machismo” foi lançada contra um dos ocupantes homens durante uma – até aquele momento – bem-sucedida e auto-organizada ocupação de um centro universitário brasileiro. Sem maiores explicações, o tal machismo foi afirmado sem esclarecimento ou fundamentação e se decretou a condenação ou, melhor, o cancelamento, para combinar melhor com a prática. Intimidados, um a um, todos os homens foram deixando a ocupação que em poucos dias se esvaiu. Quem se beneficiou, o movimento feminista ou o capital que negava as reinvindicações dos estudantes (todos estudantes – homens, mulheres, LGBTQIAPN+ e quantas letras mais quiserem agregar)?
Infelizmente episódios como esse se repetem país afora. Seja impedindo estudantes de frequentarem aulas, seja impedindo professores de ministrá-las em função de alegações de machismo e/ou homofobia. Uma vez que a pessoa é “cancelada” sua vida não volta a ser a mesma. Muitas das acusações se comprovaram falsas, assim como o argumento de que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Não há um estudo científico sequer demonstrando isso. No entanto, pelo seu tamanho e população, o Brasil estará sempre nos primeiros lugares em números absolutos para qualquer coisa. Mas não é assim que estes acontecimentos devem ser dimensionados em um estudo sério.
“Minha revolução é cortar pica de esquerdomacho.” — Estuante universitária da UFSC
Se o conjunto do proletariado perde com isso, o verdadeiro movimento feminista classista é um dos mais prejudicados, pois ele vem lutando – há muito tempo e a duras penas – para conquistar alguns avanços. Avanços esses que custam alguma coisa ao capital. Diferentemente de aceitar um nome social, que sai de graça, apesar de ser comemorado como se fosse a conquista do século.
Como chegamos até aqui? Como esse movimento conhecido por Woke está dominando os espaços e as pautas? Para quem diz lutar contra o imperialismo, vamos muito mal, pois importamos sem qualquer crítica o que foi pensado nas universidades estadunidenses e financiado por grandes conglomerados do capital. Surgido no meio acadêmico dos países de capitalismo mais desenvolvido, o wokismo se impõe pelo método da censura ou cancelamento, seja dos vínculos sociais de um único indivíduo, seja do passado histórico, seja de uma tradição. Porém, tentam dar um ar reivindicativo às suas ações. Por exemplo, derrubam uma estátua erguida em homenagem a um escritor ou o cancelam por identificarem racismo em suas obras. Diante disso, a solução é destruir uma obra de arte ou invés de debater seu conteúdo? A história é para ser apagada? Não importa se ela nos agrada ou não, ela deve ser conhecida. E, se em algum momento do passado aquele personagem foi homenageado com uma estátua, é importante que se conheça o contexto em que isso ocorreu. Ao derrubá-la essa possibilidade se acaba. Nesse mesmo sentido s fascistas queimavam livros.
Em linhas gerais, é a ideia de tomar a identidade de grupo, necessária para viver em sociedade, de modo a desconsiderar a identidade do grupo maior ao qual se está inserido. O identitarismo é o culto da identidade grupal, étnica, sexual, de gênero, de religião etc., como se esta pudesse existir em sobreposição às identidades de grupos maiores, ou, digamos, mundiais. Falando em termos puramente filosóficos: o particular é assumido como se existisse sem o geral ou no lugar do geral, gerando uma situação de hipostasia (equívoco cognitivo que se caracteriza pela atribuição de existência concreta e objetiva a uma realidade fictícia, abstrata ou restrita ao pensamento humano) que substitui a realidade objetiva/material pela subjetividade do indivíduo. Ou seja, o real é aquilo que está dentro da minha cabeça, é o que eu sinto, é o que eu penso que é. E não existe realidade fora disso.
Os “wokes” se colocam numa posição de supremacismo moral e nisso encontram afinidade com a cultura protestante que ataca o centralismo católico, vez que os protestantes são bastante descentralizados e defendem que cada um pode interpretar a bíblia à sua maneira, numa ligação menos mediada com Deus. Da mesma forma os “wokes” bastam a si mesmos, em suas reivindicações estão sempre no lugar de vítima ou oprimido de onde emana toda verdade.
Nesse sentido, a ideologia imperialista estadunidense partilha com a ideologia do protestantismo cristão a absurda e arrogante noção de serem “eleitos pela providência” para levar uma mensagem de liberdade/democracia ao mundo. A ideologia woke encarna isso perfeitamente com o pretexto de emancipar qualquer um que eles entendam serem oprimidos sem nenhum recorte de classe. Os “wokes” impregnaram as esquerdas a um ponto tal que as bandeiras sérias de luta das pautas dos movimentos feministas, movimento negro, movimento LGBT+, foram substituídas por um chamamento a voto em mulheres, negros ou gays, independente do que defendam: isso já não importa. Por trás disso está um processo, consciente ou não, de rejuvenescimento de elites, tornando-as mais” plurais e democráticas”.
Porém, a agenda Woke em seu aprisionamento da esquerda anticomunista não se contenta em apagar a história, impor práticas fascistas, fragmentar todas as lutas ao infinito, construir uma “realidade” baseada em sentimentos, levar o individualismo a níveis inimagináves. O wokismo também investe contra o único produto material do cérebro: a linguagem. Sob o argumento da “visibilidade” tenta sexualizar palavras e conceitos, agredindo os idiomas que não possuem expressões neutras (também acusando-os de machismo, transfobia, etc.) e produzindo aberrações que diminuem a capacidade de expressão rigorosa e clara entre pessoas. Na língua portuguesa, um bom exemplo é o “todes”.
O wokismo impõe a ditadura do pensamento único em nome da diversidade. Raras vezes na história política e social recente do planeta, um movimento social, partindo de causas fundamentalmente justas, terá se perdido e pervertido tanto pelos descaminhos da fraude, da trapaça, da ignorância, da violência e do autoritarismo. Quem discorda dos movimentos identitários ou os confronta é silenciado. Tais movimentos são incapazes de debater ideias. A postura identitária, diante de qualquer crítica, procura a desqualificação e o ataque. O argumento é substituído pelo insulto, o debate cede lugar a perseguições, com seus cancelamentos e linchamentos virtuais.
“O culto das identidades é sucedâneo do nacionalismo na época da transnacionalização o capital. No mundo em que vivemos, os ataques dirigidos contra a solidariedade da classe trabalhadora, que nas décadas de 1920 e 1930 couberam aos nacionalismos, são ressuscitados pelo identitarismo. Por isso o culto das identidades é um dos mais potentes mecanismos geradores do que poderá ser um fascismo de nosso tempo.” — João Bernardo
O pertencimento de classe foi trocado por uma luta identitária fratricida em que não se luta pelo reconhecimento da especificidade de grupos, mas do cancelamento, censura, apagamento de pessoas e grupos entendidos como “opressores” na base do “estou ofendido”. Neste sentido, a opressão não é econômica, e sim identitária. Na visão dessa pessoas, um negro empresário é muito mais oprimido que um branco que trabalha para ele.
A hegemonia identitária é expressão direta da ausência do proletariado como movimento independente na luta de classes. E chega ao ponto em que a dita esquerda apresenta os trabalhadores como mais uma identidade, que eventualmente pode se acoplar às demais. Até agora, essa inserção do proletariado no labirinto das identidades significa a maior vitória do identitarismo.
Enquanto a afirmação da classe proletária no plano sociológico rompe, ou visa romper, a sociedade horizontalmente, marcando com clareza a separação entre produtores e apropriadores de mais-valia; o nacionalismo e o identitarismo reúnem proletários e capitalistas em torno de um mito comum, seja geográfico, cultural ou biológico. E numa luta, é indispensável distinguir a política de classe e a política de identidades, sem supor que uma possa se aliar à outra.
Fica evidente que o wokismo não se constrói a partir de uma análise das contradições da realidade material, mas por categorias ideológicas de auto-identificação. Não soma, desagrega. Promove a destruição dos vínculos sociais, o puro imediatismo individual e arrasta a quem adota seus modismos junto com ele. Se não forem devidamente contidos, a direita poderá se dar ao luxo de parar de atacar a esquerda, pois esta se destruirá por si mesma♟