O projeto de lei que pretende punir notícias falsas (PL 2630/2020 – Senado Federal) conceitua a desinformação como “conteúdo, em parte ou no todo, inequivocamente falso ou enganoso, passível de verificação, colocado fora de contexto, manipulado ou forjado, com potencial de causar danos individuais ou coletivos, ressalvado o ânimo humorístico ou de paródia”. Se tal definição for rigorosamente aplicada aos diferentes meios de comunicação, poucos serão salvos. Os grupos bolsonaristas e outros da extrema-direita são famosos por disseminarem as chamadas “fake news” para atingirem seus objetivos. Mas o comportamento da mídia burguesa não é historicamente o mesmo? A diferença é que hoje encontram concorrência com grande poder de disseminação virtual. Diariamente nos telejornais, e na imprensa de modo geral, somos inundados por informações “estatísticas” ou “resultados de pesquisas” distorcidas para justificar medidas do governo contra o proletariado. Inúmeras notícias ditas oficiais, camufladas sob uma aparência de fato incontestável, deturpam os acontecimentos de modo a transformarem as vítimas em culpadas. Tanto as redes de propagação de notícias falsas como a mídia tradicional se equilibram, em maior ou menor grau, no binômio divulgar/criar fatos pois seu objetivo primeiro não é o de retratar alguma realidade e sim o de consolidá-la perpetuamente.
A mídia progressista
Diante destas constatações, nosso porto seguro então seria constituído pelos meios de comunicação alinhados com o pensamento progressista, que se apresentam como alternativa às formas da mídia tradicional, supostamente desvinculados de quaisquer interesses e cujo trabalho se desenvolve de forma “colaborativa”?
Durante as jornadas de junho de 2013, um grupo de mídias digitais declarou uma suposta novidade nas lutas sociais: a cobertura dos atos de forma instantânea e transmitida ao vivo pela internet. Trata-se do Mídia Ninja, braço de comunicação da empresa Fora do Eixo. Depois, revelou-se o acordo do Mídia Ninja com a empresa Oximity, já vendida para a Scribd/SlideShare. São plataformas que promovem uma interação direta com as notícias. A Oximity foi fundada por bilionários das mídias digitais que lucram da mesma forma que o Facebook, coletando e vendendo dados dos usuários. São “plataformas colaborativas” de notícias: seus repórteres de rua trabalham gratuitamente, sem receber equipamentos ou demais assistências, e esse é considerado um coletivo radical de “mídia independente”. Há também a “blogosfera progressista” – Brasil 247, GGN, Fórum, Viomundo, DCM, Intercept, etc. – toda comprometida (patrocinada) em louvar o PT e demais satélites da esquerda do capital e, claro, criticar muito o PSDB e demais partidos das direitas. Seus editores são jornalistas profissionais que sobrevivem, muito bem, exercendo sua própria atividade especializada no mundo do trabalho tal como ele é. Não há nada transformador nisso. Assim como existem comércios têxteis dispostos a estampar guerrilheiros e frases de protestos em suas camisetas e lucrar com isso, existem jornalistas dispostos a serem bem pagos para divulgar determinado fato ou ponto de vista. É muito comum na trajetória desses profissionais a “mudança” de posição política conforme o mercado em que se inserem. O caso do editor do Brasil 247 é emblemático, ora defensor das privatizações e crítico até mesmo ao PT e aos movimentos sociais, em 2011 funda o maior portal virtual da esquerda brasileira, tendo como outro editor um ghost writer de Joice Hasselmann. Os casos são vários e é esse o nível político de jornalistas a quem muitos entregam suas consciências em busca de uma “alternativa” à mídia tradicional, como se eles fossem outra coisa. Trata-se apenas de uma adaptação às exigências de determinado nicho da indústria da informação, afinal, quem paga a banda escolhe a música.
“O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração, que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças que são decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundação de contínuas distrações e de informações insignificantes.” — Noam Chomsky
A extrema-direita digitalizada
Em paralelo, o bolsonarismo adentrou com maior radicalidade no mundo das redes digitais. Há quem diga que se trata de uma “revolução digital”, pois teria sido a única eleição de extrema-direita graças especialmente ao amplo uso dos recursos das redes sociais. Todos sabemos os métodos dessa atividade durante as eleições e ainda depois dela, vendendo a imagem de uma campanha eleitoral independente quando na verdade contou com verbas milionárias do empresariado para sustentar essa rede de mentiras e difamações fabricadas e compartilhadas em massa. A única novidade nesse cenário é apenas o ambiente virtual, com seu maior alcance e instantaneidade da divulgação, já que nada combina mais com eleições e política oficial do que tais práticas.
Outro fenômeno que vem se tornando bastante comum nos tempos que correm é a “censura prévia”, que se manifesta com decisões liminares das diversas instâncias do judiciário, dentro das normas democráticas. Estas decisões não atingiram apenas os famosos milicianos digitais do bolsonarismo, mas inclusive a própria TV Globo, a RBS, o Antagonista/Crusoé e também o site do jornalista Luis Nassif. No entanto, vetar uma publicação de matéria ou “derrubar” um site de notícias nada mais é do que controlar o que as pessoas devem ou não saber. Para a classe dominante isso é essencial – ocultar que todas as suas ações têm um único objetivo: agir em benefício próprio, transferindo recursos do trabalho para o capital. Nessa disputa por uma narrativa ideológica, na qual a burguesia tenta fazer crer que os seus interesses de classe são os interesses de toda a humanidade, o combate a mídias realmente proletárias não se limitará à mera censura, mas à eliminação.
“O nosso objectivo é o de dar a conhecer e unificar as diferentes lutas dos trabalhadores e de todos os oprimidos. Desenvolveremos para isso dois grandes tipos de trabalho: por um lado, o reforço deste jornal; por outro, fomentar o trabalho de organização de reuniões de massas entre trabalhadores inseridos em lutas diferentes O trabalho conjunto do jornal e de reuniões de massas contribuirá para acelerar a fusão das lutas dos trabalhadores e a união de todos os explorados.” — Jornal Combate (1974-1978)
Imprensa proletária e lutas sociais
De um lado, a sensação de compartilhar e participar virtualmente de manifestações, e do outro a ascensão meteórica ao poder, podem parecer sedutoras para quem acredita nas lutas sociais. Ao mesmo tempo, a velha imprensa tradicional (O Globo, Folha, Estadão e demais regionais) busca agora se vender como a portadora da verdade, quando é a pioneira caluniadora dos movimentos e suas lutas. Devemos então refletir se o proletariado necessita de tais instrumentos ou se pode e deve, como já sempre fez nos seus momentos de conquistas históricas, criar redes de comunicação que não sejam nem espetáculos midiáticos nem mensagens distribuídas de forma aleatória e massiva. Trata-se de pensar formas de comunicação e interação entre as lutas forjadas pelos proletários, de acordo com as necessidades de cada conflito, expressando a realidade sob a ótica do seu próprio interesse de classe.
Da mesma forma que o movimento de luta proletária autêntica não se define por consumir esta ou aquela prateleira do supermercado, ou escolher este ou aquele candidato nas eleições, o proletariado em luta não pode se limitar a escolher qual é o veículo de imprensa menos pior. Esse rebaixamento da consciência tem permitido, por exemplo, que o ataque à Rede Globo, antes realizado pela esquerda, hoje seja protagonizado pelo bolsonarismo – assim como às demais instituições – enquanto que setores da esquerda já fizeram as pazes com uma histórica, grande e sempre atual inimiga das lutas sociais.
Assim, se cada conflito deve gerar seus instrumentos de luta no seu próprio processo – uma luta por moradia cria seu comitê e seus delegados; uma luta por aumento de salários cria seu grupo de trabalhadores em movimento; uma ocupação estudantil cria suas assembleias permanentes e seus grupos de trabalho para manter a ocupação, e assim por diante – não pode ser diferente quando estamos tratando da nossa comunicação. O movimento internacional e grandes momentos de transformação sempre criaram seus próprios instrumentos: rádios livres, cartazes, panfletos, periódicos, jornais, correspondências, dentre outros. Nenhum desses veículos dependia de jornalistas de carreira ou especialistas da comunicação, eram elaborados e divulgados pelos próprios militantes. O mesmo deve servir de exemplo para a formação política de forma geral: enquanto a esquerda do capital acredita que o supra sumo do pensamento crítico e revolucionário se encontra nos cursos do ensino superior estatal, é preciso também criar nossos próprios centros de estudos.
A exposição voluntária e gratuita de pessoas bem intencionadas, nas redes sociais, tem servido para demissões no emprego, mapeamento pela repressão (polícia e empresas) e também para “debates” sem qualquer consequência política transformadora. Logo, em vez de jogar o próprio copo d’água no mar da internet, compartilhando notícias e memes a favor de uma visão de mundo humanizada, acreditando deixar o mundo menos salgado, é necessário investir novamente no método de baixo para cima: observar, estudar, debater, sistematizar e criar materiais de divulgação a partir da realidade das nossas lutas, contando com nossos recursos objetivos (materiais e humanos) e nossa subjetividade revolucionária. A informação a ser produzida pelas organizações do proletariado não será uma mercadoria a ser consumida, mas sim um instrumento destinado a ele mesmo enquanto classe, na articulação das lutas em nível mundial visando o fim do capitalismo.♟