A esquerda do Capital e determinadas frações da esquerda revolucionária celebram neste mês algumas recentes vitórias eleitorais como se representassem vitórias do proletariado. Imagens mostram multidões cantando o hino da Internacional Comunista em uníssono, aos prantos, após a vitória da Nova Frente Popular nas eleições parlamentares na França.
A comoção se estende até o Reino Unido após a vitória do Partido Trabalhista que colocou fim em 14 anos de governança conservadora no país. A esquerda que celebra as vitórias parlamentares presume que a tomada do aparelho do Estado trará estabilidade e prosperidade para os trabalhadores. Alguns vão além, considerando estas vitórias eleitorais como um passo importante para a revolução comunista internacional. Nesta edição do Boletim Batalhar iremos esclarecer estes equívocos.
Nova Frente Popular e o Partido Trabalhista
A Nova Frente Popular (NFP) é uma coligação que visa “revitalizar” a política de esquerda na França através de uma plataforma unificada composta por partidos de diferentes matizes (Comunista, Socialista, Verde) além de outras organizações sindicais e anticapitalistas. A NFP, embora não tenha angariado a maioria absoluta, atingiu 32,6% das cadeiras frente ao moderado Ensemble de Emmanuel Macron (27,9%) e ao fascista Reagrupamento Nacional (RN) de Marine le Pen (24.6%). A despeito das comemorações da vitória da esquerda, quem realmente está comemorando é a extrema direita francesa, que quase dobrou o número de votos (37%) nas eleições. Jean-Luc Mélenchon, cacique do partido França Insubmissa, é a figura principal da NFP e o nome mais cotado para assumir a posição de Primeiro Ministro. Há um questionamento sobre sua capacidade de encontrar a coesão necessária para objetivar o programa proposto pelo NFP, considerando que as frações que compõem o partido possuem profundas diferenças em princípio e método.
Já no Reino Unido, o novo primeiro ministro Keir Starmer do tradicional Partido Trabalhista inglês conta sob seu currículo com declarações públicas hostis às greves do movimento Black Lives Matter, e simpatia ao genocídio promovido por Israel em Gaza aonde considera que Israel “tem o direito de se defender”. Para além disso, recentemente anunciou um programa para expandir o efetivo policial a nível nacional em resposta a uma manifestação violenta da extrema direita, com um discurso “anti desordem” o que sugere um aumento na repressão contra manifestações legítimas dos trabalhadores, como por exemplo as pró-Palestina. Seu partido encontra à frente o desafio de restaurar os serviços públicos sucateados no país e ao mesmo tempo reverter medidas fiscais de austeridade definidas pelos conservadores nos mandatos anteriores. Em seu manifesto, trazem planos e estratégias que mais prometem do que explicam. Pouco se fala sobre taxação de grandes riquezas, ao passo que as 100 famílias mais ricas na Grã Bretanha viram sua fortuna aumentar em 50% nos últimos 5 anos.
Este ciclo eleitoral nos mostrou que não foi a esperança em um ou outro governo de esquerda, nem uma onda de suporte aos partidos trabalhistas que definiram as eleições. O que definiu as eleições foi o medo do real desenvolvimento de tendências fascistas na França, e uma ressaca política severa após uma década e meia de conservadorismo no Reino Unido. Agora no poder, estes partidos da esquerda do Capital precisarão governar. Será que conseguirão resolver os problemas reais dos trabalhadores de seus respectivos países? A resposta é não.
“O movimento operário mudou acompanhando as mudanças do capitalismo, mas em um sentido contrário às expectativas de Marx (…) De certa forma o movimento se tornou politicamente ‘neutro’,deixando s decisões políticas aos partidos políticos credenciados pela democracia burguesa” — Paul Mattick
Quem realmente manda?
A dinâmica real na sociedade capitalista não é ditada por partidos políticos, indivíduos influentes, líderes, filósofos ou gurus. Os aspectos econômicos e jurídicos que moldam o cotidiano dos trabalhadores são fruto de uma dinâmica social que opera sob leis tão concretas como a gravidade. Esta dinâmica está marcada invariavelmente pela luta de classes e pelas forças produtivas que a engendram, portanto, escapa à vontade dos homens humanizar ou reformar o capitalismo. O quanto ganhamos no final do mês, o quão intensamente precisamos trabalhar, quantos de nós podem fazer parte do mercado de trabalho, qual é o produto cultural da vez, e até o direito de lutar contra esta lógica são ditados pelas classes dominantes – como por exemplo o direito à greve. No capitalismo quem manda é o Capital e não governos de esquerda ou direita.
Se a esquerda parlamentar desse cabo de solucionar os problemas da vida material dos trabalhadores, considerando que nas últimas décadas viu-se a alternância entre esquerda e direita nos parlamentos do mundo, deveríamos ver uma estabilidade nos índices de renda e desigualdade globais, entretanto as pesquisas mostram claramente um declínio no poder de compra real dos trabalhadores e um aumento da desigualdade no mundo desde o pós-guerra. Isto ocorre pois buscar uma solução para nossa condição por dentro das instituições parlamentares é como querer ganhar o jogo contra o dono da bola, do campo e do juiz. Os parlamentos são instituições do Estado, e o Estado é o instrumento que a classe burguesa utiliza para dominar o proletariado. Os partidos de esquerda que participam destas instituições, acabam por ser, obrigatoriamente, comprometidos com a manutenção do próprio capitalismo e contribuem para a “festa da democracia” que mais distrai e entretém o proletariado do que qualquer outra coisa, afinal esta é sua função.
“O parlamentarismo constitui a forma típica da luta por meio dos gestores, na qual as massas só têm um papel subalterno. Na prática consiste em deixar a direção efetiva da luta nas mãos de personalidades apartadas, os deputados; estes devem, pois, manter as massas na ilusão de que outros podem conduzir o combate no lugar delas. ” — Anton Pannekoek
Se não pela urna, como lutar?
Nas últimas décadas, o que se viu no mundo ocidental foi uma alternância de poder entre a centro-direita e à esquerda do Capital. Ambos operando como capatazes do capitalismo global, gradualmente piorando as condições de vida dos trabalhadores e ao mesmo tempo tentando manter viva a confiança desses nas instituições democráticas. Dessa forma, ausente qualquer protagonismo das lutas proletárias na cena política, pavimentou-se a via para a extrema direita se articular como oposição e se solidificar cada vez mais como alternativa eleitoral, por meio de uma retórica “anti-sistema”, de “rebeldia” e “novidade” na política burguesa.
Os efeitos deste pingue-pongue político são devastadores para os proletários que, seja lá sob qual liderança partidária, vêem suas vidas materiais minguando ano após ano. Entram partidos e saem partidos e os trabalhadores privados, públicos, rurais ou urbanos, continuam sentindo na pele a sua exploração seja através de aumentos de jornada de trabalho, cortes de salários, pagamentos atrasados, desvalorização da moeda, repressão a imigrantes, entre outros. Assim, os proletários basicamente se limitam a votar na candidatura que consideram “menos pior”, ou seja, no grupo político que, aparentemente, irá piorar as condições de vida dos explorados em menor intensidade e velocidade.
Embora não comemorando estas “vitórias da esquerda”, consideramos que há sim razões para celebrar. De tempos em tempos a farsa parlamentar demonstra insuficiência em manter os trabalhadores apaziguados, e neste momento surgem lutas autônomas com a capacidade real de transformação da sociedade. Muitos têm conseguido enxergar para além deste espectro e recusar apoio seja partido A ou partido B. Esta recusa é expressa nas pesquisas em que mostram que no Reino Unido 45% dizem agora que “quase nunca” confiam nos governos de qualquer partido. Na França, quase dois terços acreditam que a democracia representativa não está a funcionar bem. Nos EUA, a confiança nas instituições nunca foi tão baixa – no governo Eisenhower (1960) era de 60% e vem sólidamente definhando a ínfimos 17% (!) no governo Biden (2023). Os comunistas devem endossar esta descrença nos partidos e governos, e esclarecer sem meias palavras as intrínsecas debilidades prático-teóricas da luta parlamentar.
Aqueles que desejam uma mudança radical na forma em que a sociedade se organiza devem começar a apontar que nenhuma emancipação da classe virá por meio das urnas. É preciso recusar firmemente a luta pela manutenção do capitalismo e compreender que nenhum parlamento pode nos salvar. Apenas instituições forjadas na luta autônoma do proletariado conseguirão estabelecer o embrião da nova sociedade livre que buscamos. ♟