É inegável que a realidade daqueles que são perseguidos e punidos pelo Estado Brasileiro só vem piorando. Embalados pela onda de reacionarismo que chegou ao poder central, mesmo algumas novidades legislativas que parecem indicar alguma garantia democrática não são páreo para outras tantas que chegam em sentido contrário.
Em janeiro de 2020 entrará em vigor a nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), trazendo 13 novos crimes passíveis de serem praticados por servidores públicos, militares e membros dos poderes de Estado como juízes, promotores e delegados. Tal iniciativa se configura como uma resposta dos gestores da burocracia estatal e de parte da burguesia aos desmandos realizados pelo Judiciário e Ministério Público durante a operação lava-jato, pois agora que sua meta foi alcançada não querem correr o risco de serem futuros alvos em operações semelhantes.
Em princípio, essa lei traz uma série de dispositivos garantistas em prol daqueles que possam vir a ser investigados, perseguidos ou detidos pelo Estado, sempre que forem alvos de um agente público com interesse de beneficiar a si mesmo ou outrem, prejudicar alguém, ou guiado por mero capricho ou satisfação pessoal.
Prevê penas relacionadas a juízes que decretem ou deixem de relaxar prisões ilegais e que determinem conduções coercitivas sem prévia intimação; a membros do Ministério Público e delegados que iniciem investigações em qualquer indício, que omitam dados ou os divulguem com o fim de expor a intimidade do investigado ou acusado, ou ainda, que façam uso de provas ilícitas.
Também há previsão para autoridades policiais que não comuniquem imediatamente prisões em flagrante ao juiz, bem como à pessoa indicada pelo detido, ou que excedam os prazos legais de cada prisão, como também os que exponham o detento, contra a sua vontade, exibindo seu corpo à curiosidade pública ou submetendo-o à situação vexatória, ou ainda que o constranjam a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro. Há punições àqueles que, no momento da prisão ou durante o interrogatório, não se identifiquem ao detido ou se identifique de maneira falsa. Por fim, ainda traz uma série de proteções ao direito de ser assistido por um advogado ou defensor público.
Na prática, porém, tal lei pode não ter tanta eficácia, pois baseia seus dispositivos em expressões vagas, tais como “injustificadamente”, “sem justa causa” ou “manifestamente cabível”. Além disso, sua aplicação depende do Poder Judiciário. No entanto, na esfera da ordem da democracia burguesa pode vir a ser útil aos militantes das causas proletárias, desde que considerados individualmente, pois não se pode nutrir ilusões no sentido de que a burguesia daria um salvo conduto para que os proletários lutem enquanto classe auto-organizada.
Por outro lado, em completa oposição a tais garantias democráticas, tramita no Congresso o Projeto de Lei Anticrime de Sérgio Moro, que já se mostra em campanha presidencial para 2022, e propõe uma série de retrocessos para legalizar a face mais obscura da repressão estatal.
Primeiramente, o projeto visa autorizar de vez a prisão após condenação em 2ª instância, que não é definitiva. É importante lembrar que a realidade carcerária brasileira atual é bem pior, já que 41,5% dos presos ainda não possuem nenhum tipo condenação.
Porém, o ponto que mais rendeu polêmicas foi a tentativa de equiparação à legítima defesa, de quem se exceder em sua defesa em função de medo, surpresa ou violenta emoção. O que na prática significa uma carta branca para que forças de segurança, estatais ou não, promovam assassinatos de forma indiscriminada e sem receio de punição. No Brasil, só no 1º semestre de 2019 as polícias já mataram mais de 2.800 pessoas.
“Não deixa de ser surpreendente que sempre que houve motins, revoltas e sedições o aparelho judiciário tenha sido um dos alvos, do mesmo modo que o parelho fiscal, o exército e as outras formas de poder. Minha hipótese – mas é apenas uma hipótese – é que os tribunais populares, por exemplo no momento da Revolução Francesa, foram um modo da pequena burguesia aliada às massas recuperar, retomar nas mãos o movimento de luta contra a justiça. E para retomá-lo, propôs o sistema do tribunal que se refere a uma justiça que poderia ser justa, a um juiz que poderia dar uma sentença justa. A própria forma do tribunal pertence a uma ideologia da justiça que é a da burguesia.” — Michel Foucault
Outra medida pretendida é a ampliação do conceito de “organização criminosa”, deixando-o mais abrangente, acompanhada de um recrudescimento no cumprimento das penas em presídios federais de segurança máxima, prevendo até a gravação da conversa do detento com seu advogado.
Tal pacote de Moro poderá ser alterado, sofrer emendas e vetos durante a tramitação no Congresso, mas já está servindo como instrumento de promoção pessoal. Se como juiz de 1º grau virou herói da parcela conservadora do eleitorado por ter prendido Lula, agora como Ministro da Justiça quer construir a imagem de paladino que combate de forma impiedosa as facções que atuam nos presídios do país.
Seu laboratório é a intervenção federal que comanda nos presídios do Pará. Lá tentou-se proibir a entrada de advogados, e houve uma série de denúncias de torturas praticadas por sua força-tarefa, provadas em fotos e vídeos e denunciadas por 17 Procuradores da República. Os relatos são de estupros, uso de pregos nas solas dos pés e empalamentos com canos de espingardas, além de presidiárias nuas, espancadas por agentes federais, impedidas de usar banheiros e postas sob formigueiros e fezes de ratos. Moro disse que as denúncias são um mal-entendido e que a intervenção trouxe disciplina aos presídios, que, segundo ele, deveriam dar lucro a empresários.
Por fim, ainda no projeto de lei anti-crime, há a previsão de um banco nacional de perfil genético para presos por crimes dolosos, que serão obrigados a se submeter à extração de seu DNA. O que poderia parecer algo futurista já é realidade, pois Bolsonaro editou, em 09 de outubro, Decreto nº 10.046, que cria o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados com o objetivo de promover um maior compartilhamento de nossos dados pessoais entre os órgãos públicos.
Tais dados consistem em atributos biográficos, incluindo fatos da vida e vínculos empregatícios, atributos biométricos como palma da mão, digitais, íris e retinas, formato da face, voz e até maneira de andar. Muito provavelmente a colheita dessas informações será gradual, passará a ser exigida aos poucos, a cada renovação de documentos de identificação, admissão em empregos, sempre em nome da segurança pública, do combate a fraudes e da desburocratização.
“Continuando possivelmente a ser tão inoperante como até agora foi relativamente aos terroristas – quem quer que seja assim classificado – a fiscalização eletrônica terá como primeiro, e talvez único, resultado submeter a população a níveis de controle cada vez maiores. Através deste conjunto de processos, a sociedade neoliberal chegou a um ponto em que é muito dificil aplicar-lhe as antigas definições do Estado de direito, que até a pouco tinham servido para distinguir as democracias dos regimes onde impera a arbitrariedade política.” — João Bernardo.
A direita do capital devora o banquete armado pela social democracia ao longo das últimas duas décadas. A ideia de um cadastro único com todas as informações pessoais de cada brasileiro já era um sonho antigo de Dilma, que em 2015 enviou projeto semelhante ao Congresso Nacional sob o mesmo argumento de desburocratizar o país, dizendo que o Estado deve ser mais eficiente, adotando os recursos tecnológicos disponíveis para atender bem o cidadão.
Outro exemplo é de 2010, ano em que o governo PT instalou diversas unidades de UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro. Contando com a alta popularidade perante o proletariado, Lula conseguiu levar pro interior da favelas cariocas o que seria o embrião das milícias que se relacionam tão intimamente com o atual governo. Perguntado sobre os benefícios daquele programa, Lula, à época, afirmou: “antes, o povo tinha medo da polícia, que só subia para bater. Agora a polícia bate em quem tem que bater, protege o cidadão, leva cultura, educação e decência”.
O proletariado brasileiro está pagando um preço cada vez mais alto por sua apatia e incapacidade de resistir de forma auto-organizada aos avanços do capital. Já são décadas de crença nas instituições burguesas. Enquanto facções da burguesia criam leis para que “cidadãos” não sejam alvos de abuso de autoridade, o proletariado precisa perceber que o abuso em si é o fato de estar submetido a autoridades estatais, que detêm o monopólio da força e da resolução de conflitos, que quer controlá-lo em nível genético e submetê-lo a masmorras. ♟